Larissa Schip
Um relato
- Criação
Quando fui convidada para participar do terceiro ciclo do Cosmopolíticas, com o tema Amores, de imediato pensei em apresentar o trabalho Ver.tigem (2017-18). Escrever sobre esse trabalho é reviver uma série de memórias; por isto, decidi fazer um relato. Comecei a produzir Ver.tigem em 2017, mais especificamente na noite do dia 29 de abril daquele ano. Produzir é uma inquietação, vem da necessidade de tornar visual aquilo que nos move, aquilo que precisamos externalizar, que desejamos, que queremos compartilhar – nesse sentido, eu diria que nós também produzimos conhecimento, um conhecimento de tipo poético. Conhecimento que fala das relações do mundo em que vivemos no encontro que estabelecemos com o que nos é mais íntimo: aqui, sentimentos são compartilhados e tudo que se espera é que, de alguma maneira, o trabalho toque o outro.
Todo dia 29 de abril, desde 2015, é um dia marcante para professores da rede estadual do Paraná, assim como para todas as pessoas que, de alguma forma, sofreram com a truculência do governo do Estado que não só retirou direitos dos servidores nesta data, mas também os atacou por 2 horas com bombas de gás, de efeito sonoro e tiros de borracha. Um cenário que jamais apagaremos de nossas mentes. Datas como essa carregam uma inquietação e, por vezes, o ato de criar está ligado à revolta – a revolta que nasce do amor que sentimos pelos nossos, pelos meus pais professores, pelos professores que me formaram, pela empatia ao(s) outro(s), pela nossa casa pública que, naquele momento, era para mim a Faculdade de Artes do Paraná.
Dois anos depois do marcante 29 de abril, lá estava eu, na segurança da casa e mesmo assim inquieta. Dessa inquietação surge a necessidade de começar um novo trabalho. Eu havia acabado de me formar na graduação, estava expondo pela primeira vez em um museu, junto ao meu amigo e artista Everton Leite, e a urgência do fazer artístico tomava conta.
Comecei a observar minha estante de livros e a folhear alguns dos meus preferidos; neles, redescobri passagens que muito me tocaram na primeira vez em que os li. À medida que me reencontrava com meus livros, me deparava com os eu(s) de todos aqueles antigos momentos, com os eu(s) do meu passado. Observava passagens que ainda me agradavam muito e outras que nem tanto – passagens que eu já não sabia identificar como especiais para mim (um dia elas foram especiais, mas já não me lembro mais o porquê). Em seguida, comecei a digitar essas passagens, as imprimi e recortei palavra por palavra – daí resultou um monte de palavras misturadas dentro de um saquinho de plástico.
Tinha em mãos três meses de um quebra-cabeça com 692 palavras.
Um quebra-cabeça nos leva a organizar suas peças para que elas formem uma imagem já programada. No entanto, eu não pretendia reescrever os trechos originais dos quais as palavras foram retiradas. Diferentemente, meu desejo era ressignificá-las, ou seja, criar com elas um novo enredo. Certas palavras me traziam à memória exatamente o contexto do qual foram retiradas, ao passo que outras não manifestavam em minha mente os vestígios de suas origens contextuais. Mas a questão que quero ressaltar aqui é a seguinte: quando se está produzindo, o controle do ato é limitado – isto porque o externo interfere na produção, moldando-a a cada momento.
2. Amores
Mas onde estão os amores no caso de Ver.tigem? Estão na interferência, isto é, nos amores que me influenciavam e que me influenciam a todo o momento. Estão no amor canino que, naquela época, deslanchava em minha performance – no amor que se articulava à partilha da dor pelo tumor na cabeça de Piti, tumor que visivelmente crescia ao meu lado. Piti, aquele ser deitado em uma coberta logo ali, invadia meus pensamentos, me fazia deixar de lado o meu jogo de palavras para que eu pudesse exercer a prática extra-humana do cuidado, para que eu pudesse dar assistência às suas convulsões que poderiam ocorrer a qualquer momento, sem mais nem menos. O pânico tomava conta de mim quando nos encontrávamos a sós (Piti e eu – eu e Piti); o pânico tomava conta dela quando nos encontrávamos com a veterinária (Piti, eu e a veterinária – a veterinária, eu e Piti – eu, Piti e a veterinária).
Hoje sei que observar um ciclo de vida é um privilégio, é se dar conta da relação que se tem com o outro. Hoje sei que este amor privilegiado, que faz face com a morte, está impregnado em Ver.tigem.
No entanto, em Ver.tigem, encontro mais do que essa relação com a Piti – cada frase do texto que o compõe é dedicada a alguém (humano ou não-humano), a um lugar ou a uma vivência. Transformar ou fazer de Ver.tigem um livro, me deu a possibilidade de entregar a esses alguéns ali implicados uma declaração dos meus e dos nossos sentimentos. Para além das paredes brancas das galerias de arte, em Ver.tigem encontro a possibilidade da entrega, entrega de um sentimento cheio de texto e de um texto cheio de sentimentos. Ver.tigem é um livro jogo e, ao entregá-lo, dou a possibilidade a quem o recebe de destruí-lo – destruí-lo para que, a partir das palavras que ofereço, um novo texto se (re)construa.
3. Vertigem
Vertigem é uma sensação, é o que sentimos quando, à beira de um precipício, olhamos para baixo – vale dizer aqui que não é o precipício que nos aflige; na verdade, é a percepção de que guardamos em nós a pulsão de morte, isto é, a possibilidade de que nosso corpo pode cair e cair por vontade própria. Mas para que a vertigem passe, basta um limite; basta uma área próxima que nos assegure que, se cairmos, não iremos nos machucar; basta este alívio utópico de que a morte não existe. No limite, não existe vertigem. Mas, como ainda não encontrei o limite, ainda sinto vertigem. E da minha vertigem surge a pergunta: qual é o limite de nossas relações? Qual é o limite entre o eu e o outro? Existe limite na minha relação com a Piti ou com todos aqueles alguéns que aparecem em Ver.tigem?
Qual é o limite do amor? Não sei, por isso ainda sinto vertigem.
Palavras são códigos. Mas, o ato de interpretar um texto é livre, há quem tenha se encontrado comigo a partir do meu texto, do meu ensaio vertiginoso. Contudo, há também um público desconhecido, com o qual eu não pude me encontrar, mesmo sabendo que eles já visitaram este meu texto.
4. Encontro
Um livro tem um limite, quer dizer um livro tem uma limitação de forma. Um livro precisa ser manuseado para ser lido e o espaço expositivo demanda o olhar (tão somente o olhar), sobretudo em uma cultura na qual manipular e interagir com um objeto de arte pode ser arriscado e, muitas vezes, proibido. Não podemos tocar, podemos apenas ler e ver, mas jamais tocar. Aí há um limite. No entanto, decidi diluí-lo, dissolvê-lo, de modo que Ver.tigem exige o toque, demanda o toque.
Em 2019, na exposição Palimpsesto, do 29ª Edição do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo, 2ª Mostra, expus o trabalho Ver.tigem em dois formatos, havia o livro em uma prateleira – para ser visto de forma ativa pelo público, embora (faz-se importante ressaltar) devido às características físicas do espaço e à quantidade de pessoas que o frequentam, a ideia original de permitir o livre acesso ao livro, para que ele pudesse ser recortado, não foi aprovada; então, o segundo formato foi criado: uma parede magnética com todas as palavras do livro em imã para serem manipuladas pelas pessoas. Mesmo sem acreditar que a interação seria exercida, pois a interação em museus é dificilmente satisfatória – talvez devido a cultura do “don’t touch, it’s art” que se repete entre o público que frequenta os museus e consome arte –, deixei as palavras dispersas na parede magnética na intenção de que elas fossem manipuladas. Na abertura da exposição, ao chegar no Centro Cultural, imediatamente olho o mural e percebo que o texto já estava alterado. Volto para Curitiba cheia de alegria e passo a acompanhar a interação com o mural pelo Instagram.
Ao retornar a São Paulo para acompanhar os últimos dias de exposição, três meses após a abertura, tenho uma surpresa que me desperta ainda mais alegria: deparo-me com o livro Ver.tigem recortado, rasgado. O público do Centro Cultural São Paulo ultrapassou os limites impostos por nós que expomos, eles manipularam o livro que inicialmente, por uma escolha da curadoria, não deveria ser tocado. Por meio dessa experiência interacional de ultrapassagem, dei-me conta de que a arte pode ser uma abertura ao encontro e à ação, ou seja, ela não precisa ser pura passividade contemplativa.
Em 2020, no mesmo formato que em São Paulo, expus Ver.tigem, na primeira Mostra do Ateliê da Resistência, na Casa da Resistência de Curitiba. Esta exposição se sucedeu dois dias antes da casa ser fechada devido à Pandemia do Covid-19. Em tal ocasião, pude observar amigos ativos em minhas palavras – palavras que roubei de escritores que me foram e que me são especiais. Entre amigos, entre amores e entre afetos, é nesse “entre” que está Ver.tigem, é neste “entre” que ele desponta e é neste “entre” que ele é exposto.
Entre amores, entre amigos, entre afetos, entre olhares que se tocam e toques que se olham: Ver.tigem.
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