Comunicações, Cassiana Stephan

Uma carta a Larissa Schip: sobre Ver.tigem

Cassiana Stephan

  1. Memória

Aqui, nessa conversa, que se instaura entre eu e você a partir da vertigem que nos conjuga na diferença que nos afasta – aqui, ao pegar este livro que se chama “Ver.tigem” e ao me defrontar com quatro barras que compõem uma bandeira, imediatamente recordo-me da logo da banda punk Black Flag. O símbolo do Black Flag foi criado pelo artista Raymond Pettibon e sei que você sabe disso, pois me lembro do dia em que te apresentei o documentário The Art of Punk. Estávamos todos reunidos no meu pequeno apartamento, neste ambiente que simbolizava meu primeiro ato de liberdade em relação ao espaço nuclear da casa e do seio familiar; ali (naquele apartamento, meu primeiro apartamento) eu já não estava mais em segurança, estava solta, insegura e desgarrada dos meus laços consanguíneos.

Lá estávamos nós, sentadas e sentados no chão, junto aos cães e aos gatos que ali habitavam. Todos nós assistíamos A arte do punk

Quando percebo seu livro, lembro-me deste momento e tal recordação me causa vertigem, pois voltar no tempo é ultrapassar os limites da vida presente sem a certeza de que a ela conseguiremos retornar. Às vezes, evito voltar meu olhar ao passado, evito ativar minha memória, porque sinto que ela é para mim um precipício saudoso: experiência fantasmagórica de imagens que circulam em minha mente e em minha alma sem qualquer materialidade em ato. Trata-se, pois, da “saudade que (já) começou a derramar nervosas lágrimas em (meu) coração”. (SCHIP, Ver.tigem)

A saudade é uma sensação vertiginosa, espectral – reaviva em nós a presença dos mortos – daqueles que já não são como antes ou daqueles que simplesmente não estão mais aqui (que padeceram por natureza ou por violência). Sem dúvida, seu livro é para mim vertiginoso porque ele transgride a ordem do discurso e porque, no caos da palavra e na rebelião do ato que faz da desordem uma obra, seu livro me incita a memória de amores perdidos. Torna-se, assim, um objeto extra-temporal – como um álbum de fotografias através do qual tento rememorar os contextos que um dia me envolveram ou que nunca me abarcaram de forma direta – sinto saudades pelo que vivi e pelo que não vivi, sinto vertigem ao olhar fotos de juventude de meus pais, imagens de infância em fitas VHS, fotos dos meus cães, dos meus gatos, da minha casa, da casa da qual eu desgarrava ao viver naquele primeiro apartamento, casa que já não existe mais: R. Joaquim Lacerda, 574 – “memória repente, ausência sonhada: a casa” (SCHIP, Ver.tigem)

Digressões, seu livro me incita digressões, digressões que me levam “mais ou menos para dentro de mim mesma” (Ibidem.). Mas, permita-me recuperar o fio da meada. Tudo começou, parece-me, com The Art of Punk. Então, gostaria de fazer uma pergunta que nunca te fiz. Por que o Black Flag? Por que a bandeira preta do Black Flag se tornou, em certa medida, um símbolo de sua vertigem?  A bandeira que simboliza e intitula a banda nos remete à bandeira preta dos anarquistas. Os quatro pilares que juntos compõe a bandeira do Black Flag denotam o movimento: movimento da bandeira esvoaçante impactada pelo vento, mas também movimento da ação que está no centro do anarquismo e do punk. Em seu livro, as quatro barras da bandeira aparecem sem cor: quatro barras ocas, apoiadas sobre um fundo branco. O que estas barras representam para você e em que medida elas te causam vertigem?

As barras da bandeira negra simbolizam, de acordo com os próprios integrantes do Black Flag, a inquietação, o caos e a rebelião. Poderíamos dizer, extrapolando o relato da banda a partir da percepção e da experiência do e com o seu livro, que o amor responde e ata os três primeiros eixos de uma bandeira que se configura por meio de quatro pilares. Então, no caso de Ver.tigem, as quatro barras incolores expressam respectivamente a inquietação, o caos, a rebelião e o amor. De algum modo esses quatro elementos são motores da ação ético-política que intervém tanto no espaço da casa quanto no espaço social da esfera pública. De fora para dentro e de dentro para fora: Vertigem.

2. 29 de abril

Assim, chegamos a um dos tópicos mais importantes de seu relato – o fatídico 29 de abril de 2015, dia em que os professores e professoras foram bombardeados pelo Estado do Paraná. Confesso, e esta é uma confissão muito egoísta, que a vertigem que este dia me causa é pessoal e não necessariamente política. Nunca fui militante e estou longe de ser, mas neste dia em especial acho que fui menos ainda. Desde que nasci comemoro o dia 29 de abril, pois neste dia quem nasceu foi minha mãe. A. T. L., nascida em 29 de abril de 1963.

No dia 29 de abril de 2015, ela deveria comemorar seu aniversário como A. L. S., mas acabou o comemorando sem o S. Este foi o primeiro aniversário de minha mãe, desde que nasci, em que meu pai não estava presente, em que o S. que compunha seu nome de casada havia subitamente desaparecido. Ele morrera em 23 de dezembro de 2014. Sua morte foi violenta e a vertigem que este fim nos causou ressoou com grande impacto no dia 29 de abril de 2015. Neste dia não olhei os jornais, não fui à praça pública acompanhar as manifestações, não quis saber o que estava acontecendo ao meu redor. Decidi voltar para casa, para a casa da qual tentava me desgarrar ao habitar o meu pequeno apartamento. Ao chegar lá, em minha casa de outrora, casa que já não existe mais, sentei-me ao lado de minha mãe. Nesse momento, entendi que uma das piores vertigens é a da falta que o amor nos faz. Ali, ao lado dela, dei-me conta de que o vazio que o amor deixa é uma das sensações mais terrificantes. A vida é o limite da morte, mas a morte é o não-limite da vida; a morte é o além, é aquilo que ultrapassa a materialidade do toque e a corporalidade da presença real. Nesse sentido, no sentido da morte, só existe, portanto, Ver.tigem. Como você pode perceber, concordo com você de que “No limite não existe vertigem”. Contudo, temos que convir, que no não-limite tudo o que nos resta (àqueles e àquelas que ficam) é a Vertigem.   

29 de abril de 2015, o primeiro aniversário dela sem a presença real dele. Desde então, minha mãe está presa à memória fantasmagórica da imagem deles, dos dois, dele e dela. Sinto vertigem ao perceber que a memória engoliu minha mãe. Ela não quer mais o tempo presente, prefere o passado que guarda a imagem fantasmagórica de meu pai e aquela de Pitis.

3. Pitis

Pitis – e não Piti, como no seu caso – era uma cachorrinha pinscher que adorava meu pai. Ele era o humano preferido dela. Meu pai foi um grande amigo de Pitis, permitiu que ela superasse seu medo, sobretudo o medo de homens.

Pitis havia sido espancada por um homem que a abandonara em uma caixa de papelão. Quando a encontramos, percebemos que suas patas estavam todas quebradas. De imediato, senti vertigem – ali, perante a dor infinita de Pitis, dor causada por uma violência descomunal (sem limites), senti vertigem. Eu não sei se você sabe disso, mas o amor que você sente por Piti reverbera em mim como o amor que eu sinto por Pitis.

Em 2015, Pitis se entristeceu. Há quatro anos ela estava conosco e durante esses quatro anos ela nunca havia ficado tanto tempo sem meu pai. Como minha mãe, Pitis esperava reencontrá-lo.

Minha mãe, para se defender da dor vinculada a uma espera sem limites, decidiu voltar ao passado e ali residir até que a morte, que um dia os separou, reunisse-os novamente. Pitis, no entanto, foi mais persistente com o tempo presente. Toda a tarde ela o esperava em frente ao portão. Ela o esperava até o cair da noite, mas ele – ele não chegava. Melancólica, minha mãe não conseguia dizer a Pitis que ele jamais voltaria, que ele jamais voltará.

Este processo de profunda dor durou alguns meses. Durante alguns meses Pitis pensou que a morte não era o não-limite da vida. Durante alguns meses ela pensou que o fim da vida não era definitivo e, por isso, esperou. Mas, um dia ela acordou com uma grande inquietação. Andou desesperada por todos os cantos da casa e se deu conta de que ele não era mais matéria viva, mas sim imagem fantasmagórica. Nesse dia, Pitis não foi até o portão. Nesse dia, ela se deitou ao lado de minha mãe na cama e talvez, na expectativa de reencontrá-lo no além, subitamente padeceu do coração.

A morte de Pitis foi tão súbita quanto a de meu pai e talvez seja por isto que a palavra “Pitis” e seus derivados – caninos ou não, como Piti – me causam vertigem: despertam saudade, saudade que já “começou (aqui e a agora) a derramar nervosas lágrimas em (meu) coração”. (SCHIP, Ver.tigem)

4. O amor

Como você pode perceber, não tenho muito o que dizer sobre Ver.tigem. Sendo assim, tudo o que eu quis dizer talvez possa ser resumido pela seguinte percepção: percebo em seu livro uma interioridade paradoxalmente exposta da qual desponta a verdade incontornável de que o amor e a vertigem se constituem. A vertigem desponta do fato de que o amor, como pulsão de vida, está fadado ao fim preconizado pela morte daqueles que amam e daqueles que são amados. O amor nada mais é do que “uma grande e perigosa angústia, memória de uma simples ausência – Ver.tigem” (SCHIP, Ver.tigem)

Image: acervo pessoal.

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