*Larissa Schip
Palimpsesto, 2018, lambe performance, 250 X 600 cm

Eu não consigo mais respirar, porque em uma manhã, tomada por uma tosse inesgotável, os remédios milagrosos de uma bio-necro-política suplantaram o meu próprio eu: escutei as indústrias farmacêuticas e suas antecâmaras estatais, engoli os remédios milagrosos, a tosse se transformou em doença mortal. Repentinamente, eu não habitava mais meu corpo, eu estava dentro do corpo do Estado e de seus interesses administrativos.

Então comecei a vomitar para tentar sair deste corpo que não era o meu, deste corpo que era o corpo absoluto do Todo que quer me apagar da face da Terra.

Falta de ar generalizada, diagnóstico sem fronteiras, corpo físico ou corpo social, estamos doentes, e perante a doença de nossa modernidade miserável, o silêncio e a espera não parecem mais ter espaço. Somos engolidas e engolidos por uma enunciação enganosa, falaciosa, imediata, mal verificada.

Enquanto o mundo está doente, nós tentamos viver o tempo presente. Se a doença veio do encontro súbito, insuperável e, no entanto, negado, entre o animal humano e o animal não-humano, então esta doença revela a sujeição dos seres humanos às instâncias religiosas, políticas, às instâncias ideológicas que nos escapam e que, entretanto, nos julgam, nos vigiam, nos constrangem e decidem, outorgando-nos nossa própria capacidade de autonomia física e intelectual, quais são as vidas que importam e aquelas que não importam. Que decidem arbitrariamente quais consciências devem ser salvaguardadas para que se garanta o assujeitamento capitalista, sob sua forma mais informe, mais obscena e mais falaciosa: aquela do neoliberalismo econômico que se tornou religião transnacional. Entidade feroz que não nos deixaria entrever outra saída a não ser aquela da nossa própria morte, da morte do “si”, deste si que nunca teve a possibilidade de se constituir. 

Para afrontar a produtividade neoliberal que se propaga na vida e na morte do mundo, nós propomos aqui a criação de uma rede de solidariedade baseada na sociabilização que rompe com as  fronteiras estatais, familiares, de classe, de idade, de etnia para, então, reificar o nosso modo de ser para o mundo e no mundo.

A partir de um projeto que se instala instantaneamente entre nós, tão instantaneamente quando o vírus que nos adoece, a partir de um projeto inoperante e inoperado, que começa no início do fim do mundo, nós desejamos criar, no real e por meio dele, discursos e palavras diferentes daquelas que são repetidas e inculcadas por sistemas de pensamento dominantes que nos esmagam e nos excluem, discursos e palavras capazes de nos arrancar de nossa carne neoliberal e de nos dar, finalmente, oxigênio.

Cosmopolíticas pretende ser este espaço onde nós podemos respirar, onde nós podemos nos desfazer, nem que seja por um instante, da racionalidade e da irracionalidade de nossa lógica atual, da lógica que estabelece o que nós devemos ser e ter, aqueles e aquelas que devemos amar ou detestar. Este contra-espaço vem para interromper a atualidade, a partir da crítica disto que nos adoece, que nos torna inaptas e inaptos, inadequadas e inadequados. Se distanciar, observar, ironizar o presente para transfigurá-lo. É jogando este jogo tão fortuito quanto o lançar dos dados que rolam sobre a mesa do destino, que nós criaremos espaços recreativos, reflexivos, perigosos e por vezes desordenados onde o aberrante finalmente terá seu lugar. Este jogo será jogado por nós, por todas e todos que têm necessidade de agarrar o presente e de segurá-lo entre suas mãos para destituí-lo das mãos de Deus, do Homem, do Estado, do Outro.  

O jogo em questão é cosmopolítico, mas está para além ou para baixo de uma concepção kantiana universalista. Nosso cosmopolitismo se articula ao cinismo de Diógenes, o qual perturba o status de cidadania ao afirmar que é “um cidadão do mundo” [κοσμοπολίτης]. [1] Vivendo como um cão (κύον), um cão errante, não domesticado, Diógenes decide fazer do mundo o seu habitat, nele intervindo e nele subvertendo as regras da moralidade que só servem aos cidadãos de bem. A animalidade de Diógenes, sua animalidade egoísta, de um egoísmo de tipo anarquista e anarquizante inspira nosso projeto. O animalismo de Diógenes é, portanto, tão egoísta quanto cosmopolítico, já que ele tem “um interesse particular pela liberação do mundo.” [2]

Assim, nesse espaço, compartilhamos a realidade de nossas circunstâncias individuais imediatamente vividas para que nos reapropriemos do presente a partir da perspectiva desta pluralidade de egoísmos que constituem o “mundo que é nosso por não ser de ninguém.” [3]

 

Em nosso blog você encontrará:

Conversações infinitas, conferências e entrevistas, sobre temáticas que podem nos ajudar a agir no presente;

Aforismos através dos quais o Urubu fala de forma livre e polifônica sobre diferentes assuntos que tocam a profundidade da alma e os limites do mundo;

Textos inoperantes e inoperados que, na articulação entre ficção e realidade, nos permitem imaginar diferentes possibilidades de intervenção;

E sugestões das mais diversas, sobre tudo aquilo que nos faz pensar

 

[1] (DIOGENES LAERTIUS, Vitae philosophorum, 1972, VI.63.3).

[2] (STIRNER, Der Einzige und sein Eigentum, 2016, p.268 [298]).

[3] (BLANCHOT, La communauté inavouable, 2012, p.51).