Comunicações, Marina Grochocki

Sobre amor desamparado: o amor na Argonáutica 1 de Apolônio de Rodes

Marina Cavichiolo Grochocki

And I got nervous thinking
“What’s she gonna do?”
She grabs you by the arm
I’m thinkin’, “I’m through”
Then you look back at me
And suddenly I’m helpless
(Helpless, do musical Hamilton)

Apolônio de Rodes é pouco conhecido pelos não iniciados no mundo de Clássicas, mas alguns dos personagens que o autor retrata em sua épica são dos mais famosos de toda a antiguidade, como Medeia e Hércules. O interessante é que vemos nas Argonáuticas esses personagens justamente antes de eles se tornarem suas famosas versões mitológicas: ainda jovens, mas já revelando os traços de suas fortes personalidades. Criticado por muitos por suas inovações no gênero épico (como por exemplo dando maior espaço para uma personagem feminina), Apolônio propôs mudanças que mais tarde inspiraram autores como Virgílio, em sua Eneida, mas também manteve um forte diálogo com seus antecessores.

Muito já foi dito sobre o amor em Apolônio. Giangrande (2002) aponta que o poeta desenvolve suas descrições de amor nas Argonáuticas utilizando diferentes autores, desde psicólogos helenísticos até Safo, mas ainda mantendo sua obra dentro do estilo épico. Ao mesmo tempo, Zanker (1979) defende que o autor se mostra consciente da sua escolha temática desde o início da narrativa, por exemplo enfatizando o tema através da écfrase da capa de Jasão (1.721-773) e dos sentimentos exacerbados de Hércules ao perder seu amante Hylas (1.1240-1272). Fusillo (2001) também identifica o amor entre os principais tópicos de Apolônio, supostamente retratado como um sentimento positivo, oposto à negatividade da guerra. Parece, assim, haver certo consenso entre a crítica de que Apolônio retrata o tema do amor de um modo contínuo em toda a sua obra, propondo inovações ao tema dentro da tradição épica.

No entanto, parece faltar ainda uma reflexão sobre o papel dos deuses na determinação das ações humanas e como, no caso das Argonáuticas, os deuses interferem na vida dos personagens principalmente através da manipulação de suas paixões, estando eles abertos a esse tipo de influência. Tal falta talvez se dê porque o papel do aparato divino em Apolônio é supostamente pequeno se comparado a Homero (pelo menos esse é um dos argumentos defendidos por Barkhuizen, 1979), mas isso não se confirma. Considerando o livro primeiro, fica evidente a importância e influência dos deuses no plano humano. A apresentação oferecerá uma análise de como os episódios em Lemnos (1.609-606) e Mysias (1.1187-1272) na Argonaútica 1 de Apolônio de Rodes antecipam o desenrolar da narrativa nos livros 3 e 4.

Em Lemnos, o leitor é exposto à história de Hypsypile e sua comunidade. A rainha tomou o poder de seu pai quando todas as mulheres assasinaram seus maridos (1.609-619), apesar de ela mesma omitir isso dos gregos que ali aportam. No entanto, tanto o poeta quando a personagem são claros sobre a influência de Afrodite na desestruturação da cidade (1.614-615, 1.802-803): como os maridos negligenciaram a deusa, ela os pune com a obsessão que os leva a trair as esposas, que depois buscarão sua vingança. No presente da narrativa, novamente é Afrodite quem move os argonautas a se juntarem às mulheres de Lemnos, assim como é dado a entender que também as mulheres são movidas a acolherem os viajantes através de intervenção divina. O argumento é de que como o leitor é exposto a um sumário do passado de Hypsypile, o episódio mostra diferentes comportamentos e possíveis consequências de encontros amorosos, sendo paralelo ao desenvolvimento da narrativa e do mito de Medeia. Assim como Lemnos pode ter episódios de violência por conta de conflitos amorosos e depois seguir com uma vida pacata, longe de excessos, também Medeia terá momentos de excesso e calma no decorrer da narrativa.

Em Mísia, outro episódio retrata as consequências da intervenção de Afrodite na narrativa. Dessa vez, uma ninfa aquática é movida pela deusa e apaixona-se por Hilas (1.1233-1234). Seu sentimento é descrito como “desamparo” (ἀμηχανία), como já haviam sido descritas as mulheres de Lemnos (1.638-639) e como são frequentemente descritos Jasão e Medeia. Após o sumiço de Hilas, que, como o leitor sabe mais tarde (1.1345-1357), torna-se cônjugue da ninfa, Hércules sofre a ponto de esquecer-se da expedição. Justamente o personagem que se mostra imune ao amores de Lemnos (1.865-870) desaparece num rompante gerado por sua frustração amorosa. A leitura mais comum para esse episódio é simbólica, como por exemplo argumenta Beye (1969): o modelo de herói épico antigo ou até mesmo de amor antigo (pederástico) é abandonado em prol de um novo herói, que utiliza seu encantos físicos para conquistar seus desafios, e um novo amor (heterosexual e dependente de figuras femininas). No entanto, o rapto de Hylas explora temas semelhantes ao episódio anteriormente citado, como amor, violência, e perda de autocontrole, reforçando a importância destes para a narrativa e oferecendo uma reflexão mais ampla sobre estes, especialmente através do contraste do sucesso da ninfa e do fracasso de Hércules considerando o seu amor por Hylas. O amor move personagens de todos os gêneros e níveis (por examplo humanos, heróis, e ninfas) de modo semelhante, mas apenas aqueles que se mostram abertos à influência divina serão bem sucedidos em suas aventuras.

Apesar de estudiosos, como Hunter (1993), terem já identificado e comentado as muitas semelhanças entre Hypsipyle e Medeia ou até mesmo entre Hypsipyle e Jasão, essa análise contribuirá indicando novos possíveis paralelos entre outros personagens. Críticos como Otis (1963) frequentemente condenam o modo como Apolônio desenvolve a identidade de Medeia, supostamente criando uma forte quebra entre seu comportamento no livro 3, quando apresentada como uma jovem apaixonada, e no livro 4, repentinamente transformada em uma poderosa feitiçeira. Essa visão não é mais unânime – Phinney (1967), Fantuzzi (2008), Zanker (1979) e Fusillo (2001) são apenas alguns dos que apontam como as diferentes nuances do caráter de Medeia têm uma estrutura coesiva ao decorrer da narrativa, estando misturadas desde o início. Porém, essa natureza paradóxica de Medeia é também uma característica de outros personagens no decorrer da narrativa. Essa diferença entre papéis ativos e passivos está associada a intervenção divina, que em Apolônio depende da habilidade dos personagens de se sentirem “desamparados” (ἀμήχανος) e assim a serem mais receptivos a assistência de deuses, que atuam através da manipulação de paixões.

A proposta dessa discussão é repensar como Apolônio retrata o seu grande tema – o amor. Em nossa visão, o amor para Apolônio está fortemente relacionado ao sentimento de desamparo e consequente abertura para soluções não tradicionais, proporcionadas por interações com o divino. Assim, ao invés de dar menos espaço para os deuses do que Homero dá, na verdade Apolônio os realoca no seu novo campo de batalha: o amor, os sentimentos humanos, e como eles podem romper barreiras sociais para criar novas narrativas que sobreviverão justamente por sua contravenção. Primeiro, no entanto, os combatentes devem se sentir desafiados e desamparados. Se consideramos como Davis (apud Ahl, 1976, p. 153) que o desamparo (ἀμηχανία) é uma reação humana a conflitos, o que podemos aprender com Apolônio sobre o modo como nós mesmos amamos?

Referências

Ahl, F. 1976. Lucan: An Introduction. Ithaca: Cornell University Press.
Barkhuizen, J. H. 1979. “The Psychological Characterization of Medea in Apollonius of Rhodes Argonautica 3, 744-824,” Acta Classica 22: 33-48.
Beye, C. R. 1969. “Jason as Love-Hero in Apollonius’ Argonautica.” GRBS 10: 31-55. 
Fantuzzi, M. 2008. “Which magic? Which Eros? Apollonius’ Argonautica and the different narrative roles of Medea as a sorceress in love.” In T.D. Papanghelis and A. Rengakos eds., Brill’s Companion to Apollonius Rhodius. Leiden. 287–310.
Fusillo, M. 2001. “Apollonius Rhodius as ‘Inventor’ of the Interior Monologue.” In T. D.
Papanghelis and A. Rengakos eds., A Companion to Apollonius Rhodius. Leiden. 127-146.
Giangrande, G. 2002. “Medea y la concepción del amor en Apolonio Rodio.” In A. López and A. Pociña eds., Medeas: Versiones de un mito desde Grecia hasta hoy. Granada. 329-45. 
Hunter, R. L. 1993. The Argonautica of Apollonius: Literary Studies. Cambridge.
Phinney, E. Jr. 1967. “Narrative Unity in the Argonautica: The Medea-Jason Romance.” TAPA 98: 327-41. 
Zanker, G. 1979. “The Love Theme in Apollonius Rhodius’ Argonautica.” WS 13: 52-75. 

*Image: Medea seated to right, holding out a patera of food to a serpent coiled around the tree. 
**Source: https://www.britishmuseum.org/collection/object/G_1805-0703-329.

You may also like...