Comunicações, Mayara Dionizio

O anacronismo fundante da experiência amorosa

Mayara Dionizio
Uma reflexão – Uma inspiração

“Existe sempre um momento em que, na noite, o animal deve ouvir o outro animal. É a outra noite. Isso nada tem de aterrador, nada diz de extraordinário – nada tem de comum com os fantasmas e os êxtases – é apenas um sussurro imperceptível, um ruído que mal se distingue do silêncio, o escoamento de grãos de areia do silêncio.”
Maurice Blanchot

Como começar tratando do amor justamente pelo que a ele escapa? Ou ainda, tratar do amor justamente como constituído pela dissincronia? Poderia começar tratando da ética que o amor convoca, na medida em que se trata sempre do reconhecimento do outro em sua impossibilidade de ser conhecido totalmente; ética que nos responsabiliza por aquele que não somos nós e, principalmente por isso, que nos tornamos responsáveis. Se trata daquilo que Emmanuel Levinas consagra quando evoca a imagem-conceito do rosto: o Estrangeiro, para sempre estrangeiro, que chega a mim e me coloca estranhamente olhando para o seu rosto. Pela visão de seu rosto, me é imposta toda a alteridade, me é negada toda a transcendência. Mas prefiro, por uma questão de necessidade obscura, começar pela relação que consiste nessa não relação. Sim, pois no outro encontramos o obscuro em sua obscuridade. Em L’espace littéraire (1955), Maurice Blanchot escreve “a outra noite é sempre o outro”. Mas, afinal, como “outra” noite? Existem duas noites: aquela que pertence ao dia, que faz oposição ao dia e, portanto, sua existência é definida pela existência do dia-conceito-verdade-amor realizado; e existe a outra noite, aquela que nos diz o ensurdecedor silêncio, que nos ecoa o vazio e nos coloca cegos, nos distancia de toda a possibilidade, é nela que o amor se funda.

Se é na noite que a relação amorosa se consagra, é porque é nela que a presença do eu e de outrem existe, ainda que desviada de toda presença, ainda que presença infinitamente outra. A relação se mostra como relação de exterioridade, sem a exterioridade não há relação, pois o que une o outro a mim é também o que nos separa: a nossa diferença. Em L’entretien infini (1969), Blanchot destaca aquilo que na experiência e na exigência humana se tornou modos de conceber as relações. Nesse contexto, são reconhecidos três tipos de relações: 1) a relação que parte da necessidade do Mesmo, isto é, a relação em que a diferença é constatada, mas que se busca suprimi-la em nome do idêntico; “a adequação, a identificação, que por meio da mediação, quer dizer, a luta e o trabalho na história, são as vias pelas quais ele quer reduzir tudo ao mesmo, mas também dar ao mesmo a plenitude do todo, que ele deve chegar a ser no fim do processo” (BLANCHOT, 2010, p. 119). Ou seja, relação que pertence ao dia, pois a unidade busca atravessar o todo e, deste modo, tenta fazer do conjunto uma única verdade. Relação impregnada do sujeito hegeliano que vê, em qualquer exterioridade, a possibilidade de uma unidade, de uma identidade; 2) do contrário, tem-se a relação de segundo tipo: aquela em que a unidade é obtida imediatamente, quando o Eu-sujeito se une prontamente ao Outro e “perdem-se um no outro; há êxtase, fusão e fruição (grifo do autor, BLANCHOT, 2010, p. 119). Nessa relação – diferentemente da primeira, em que o Eu é soberano e busca tornar outrem idêntico a si – o Eu deixa sua soberania, o Outro é soberano e a única possibilidade de absoluto; se trata de uma relação que almeja a unidade, o Uno. O que resta às relações amorosas? O que devo fazer frente a esse Outro sem reduzi-lo ao mesmo, nem ao Uno, sem buscar nele qualquer identidade?

Antes que eu tente, antes que tentemos essa relação do terceiro tipo – relação de distância infinita que aprofunda a descontinuidade –, ofereço-lhes exemplos delas. Decisão que me acarretará ainda a carga conceitual em um segundo momento, mas, que prefiro tomá-la; pois é nesse fora do tempo que acontece essa relação do terceiro tipo e é necessário antes seduzir com tais histórias de amores em contratempos, em amores anacrônicos, em relações fora do tempo. Retomo o mito, a princípio, a história é conhecida. Orfeu, amante e apaixonado por Eurídice, desolado pela sua morte, desce ao mundo dos mortos para pedir a Hades e Perséfone a sua amada de volta. Com a condição de resgatá-la, mas sem olhá-la, Orfeu segue caminhando, até que não resiste e ao olhar para Eurídice, ela desaparece sob os seus olhos. Mas, olhando mais de perto. Quando Orfeu desce ao submundo em busca de Eurídice, o herói se abre à noite. A segunda noite é aquela que sucede a primeira, aquela que nos deixa sem qualquer identidade ou conhecimento, aquela que é mais profunda. Contudo, relembro: Orfeu desce para Eurídice que, assim como a música que produz sua arpa, é, para ele, o extremo da arte. Eurídice, como que dissimulada pela noite, contém um véu em seu rosto, cobrindo o obscuro de sua recém-morte, a noite de seu rosto. Tal instante encena a aproximação da segunda noite, encoberta pelo véu da primeira noite.

Acontece que a missão que Orfeu coloca a si mesmo é a de trazer Eurídice ao dia, à verdade, quer lhe reconferir um rosto, uma realidade. Mas Orfeu não pode olhar para Eurídice, não pode olhar para a noite despida; nesse ponto, Eurídice é o coração da noite e, ao mesmo tempo, a essência da obra que Orfeu se propôs a produzir: o resgate ao dia. A obra se desfaz, Orfeu a arruína quando a olha, pois Eurídice se vai, se desfaz quando retorna à noite. Eis o que Orfeu fora de fato buscar no inferno de Hades: “olhar na noite o que a noite dissimula, a outra noite, a dissimulação que aparece” BLANCHOT, 2011, p. 172). Orfeu não quer Eurídice tal como a conheceu, em sua imagem diurna, em sua realidade cotidiana; ele fora buscar no inferno a Eurídice obscura que, em seu distanciamento, exclui toda a intimidade de outrora, do amor realizado. O destino de Orfeu se torna o de cantar Eurídice, ela se liga, para ele, à arte no momento em que sua presença é de uma ausência infinita: o fantasma que o persegue, mas que quando o olha se esvai. É apenas no Canto que Orfeu encontrará Eurídice, é apenas nessa relação distanciada, sem encontro, em contratempo, de descontinuidade.

Já em La communauté inavouable (1983), Blanchot traz à cena da comunidade a lenda de Tristão e Isolda que, assim como Orfeu e Eurídice, encenam a distância desmedida que marca a exigência amorosa. Em algumas páginas que antecedem a lenda, ou ainda, a suplementação da lenda por parte da leitura blanchotiana, se encontram os dizeres: “nenhuma relação, a impossibilidade de que o querer e talvez até mesmo o desejo transponham o intransponível, no encontro clandestino, repentino (fora do tempo), que se anula com o sentimento assolador, jamais assegurado de ser provado naquele que esse movimento destina ao outro privando-o talvez de ‘si’” (BLANCHOT, 2013, p. 58). Se relacionar com o Outro, a partir de então, se mostra como uma privação que implica precisamente na morte. Sim, morte, porque amar na estranheza nos expõe a um morrer que não tem fim, na medida em que morrer é impossibilitar o amor realizado. Viver uma relação impedida, privada de relação, é reviver a cada momento a separação como união, o abismo obscuro que une na separação, é um morrer sem fim. Morte da qual morre tanto Tristão quanto Isolda que realizam o seu amor na experiência da perda constante: quando, em seu leito de morte, Tristão, após ser ferido por uma lança, clama por Isolda; sua esposa o engana, diz que a sua amante não virá, Tristão morre; Isolda chega tarde demais e morre de tristeza. Não se trata, portanto, do fracasso do amor, mas, sim do cumprimento do amor que se realiza na perda. Cumprimento do amor que, em sua privação, tem de admitir a alteridade extrema quando a realidade lhe impõe que o Outro jamais o pertenceu. O tempo do amor é outro, é aquele que impede toda a partilha do tempo, pois mesmo que presentes, estão separados por uma espera que nunca se finda, nem se findará.

O mesmo encontro em Jacques Derrida quando, em Cette étrange institution qu’on appelle la littérature (1966), diz que nunca pode escrever sobre Romeu e Julieta, de Willian Shakespeare, mas somente sobre o contratempo que constitui a história amorosa de ambos os personagens. A história de Romeu e Julieta é bastante conhecida: Romeu se suicida fazendo o uso de um phármakon quando encontra a sua amada, Julieta, supostamente morta em uma cripta; acontece que Julieta não está morta, apenas sob o efeito de um outro phármakon. A tragédia da história se dá em torno de uma carta enviada pelo Frei Lourenço a Romeu que não a recebe a tempo de saber que Julieta não está morta. Julieta, ao acordar e ver Romeu morto, se mata com um punhal. Derrida vê nesse acidente o acontecimento e a temporalidade própria ao desejo: a ameaça da separação constante nas relações humanas, seja por qualquer acontecimento ou pela morte que se anuncia na vida. Isto é, existe uma estrutura de contratempo que fundamenta o desejo nas relações. Trata-se de uma interrupção sempre por vir e sempre absoluta, um desdobramento de um não-tempo, tempo por vir. Derrida, assim como Blanchot, entende que é esse anacronismo que se fundam as relações humanas, as quais ele nomeia como aforismos, pois participa do que é fragmentário. Ou ainda, faz ver tal dissincronia temporal a parte daquilo que James Joyce nele inspira: Clandestinação que se trata da força destrutiva que sempre interrompe as relações amorosas.  O amor se mostra então em um desejo que acontece no fragmento de um agora deslocado: “[n]ão se pode amar separadamente e não se pode amar senão separadamente, na separação ou no desemparelhamento do par. A uma distância infinita, porque incomensurável: eu não estarei nunca à mesma distância – de ti, que tu, que tu de mim. Não há medida comum, não há simetria. Separação infinita no próprio casal e na paridade do par” (DERRIDA, 2018, p. 83). Afinal, amo, amamos aquele que é Outro, aquele que nunca nasceu nem morrerá em nosso tempo; amo na euforia amorosa da comunhão desunida, não se trata da desgraça da união desunida, da im-possibilidade de uma presença Una. Amo enquanto promessa, essa promessa é o meu amor. Nosso amor é um aforismo!

3) A relação do terceiro tipo: agora posso retomá-la, agora a sua não-temporalidade se mostra no fora que é o dentro da literatura. Se Derrida diz que a temporalidade de Romeu e Julieta é propriamente a temporalidade do contexto e da história, isso implica naquilo que a literatura abre: a possibilidade de reconhecer o anacronismo e, ainda assim, iterá-lo. O que nos une a tais textos, a essas (não) experiências que constituem a exigência amorosa das relações humanas, é porque mesmo na realidade ordinária, por meio da literatura, podemos reconhecer o anacronismo. Amamos com a sentença da morte, amamos na alteridade, amamos o desejo, amamos o amar, amamos na separação infinita. Mas, então, o fora está aqui? Não! O fora da literatura nos permite reconhecer o contratempo como condição fundante do amor; e, por mais que esse fora nos permita o furto da história – pois dela nos apropriamos e criamos um mundo contrassinado daquilo que os autores escreveram, pois se trata sempre da nossa projeção, do nosso furto – ele é a exterioridade, não está em nós, mas naquilo que nos escapa.

É na exterioridade que se dá a relação de terceiro tipo. É a relação que considera a ruína incontornável, pois é a única forma de amar visto que sempre um morrerá antes do Outro, visto que amar é a re-afirmação incessante da finitude de si e do outro, amar é viver esse luto da separação constante. Para Blanchot (2010), esse olhar pertence sempre à terceira margem, já que a presença do Eu e do Outro nunca nos remete a nós mesmos nem à unidade. Contudo, essa relação não habita o terreno da hipótese, ela é sempre atual. Em sua atualidade, essa relação é múltipla, pois é nômade e anônima, ela caminha entre os amantes, entre os amigos; não é determinada pela unidade, é tanto móvel quanto imóvel; é determinada e indeterminante; é um deslocamento, uma dança em que “não tendo lugar e como que parecendo atrair-repelir qualquer “Eu” fora de seu lugar ou do seu papel que ele deve, no entanto, manter […] num espaço-abismo de ressonância e condensação” (BLANCHOT, 2010, p. 121).

Referências

BLANCHOT, M.  A comunidade inconfessável. Tradução: Eclair Almeida Filho. São Paulo: Lume Editora, 2013.
BLANCHOT, Maurice. Conversa Infinita, a – Vol.1- A palavra plural. Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Editora Escuta, 2010a.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2011b.
BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini. Paris: Gallimard, 1969.
BLANCHOT, Maurice. L’Espace littéraire. Paris: Gallimard, 2014.
BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable. Paris: Éditions de minuit, 1983.
DERRIDA, Jacques. “Cette étrange institution qu’on appelle la littérature”. In : DERRIDA, Jacques. Derrida d’ici, Derrida de là. Paris : Galilée, 2009.
DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida. Trad. Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.
DERRIDA, Jacques. “Fourmis”. In : Lectures de la Différence Sexuelle. Paris : Ed. Des Femmes, 1994, 69-102.
DERRIDA, Jacques. “Formigas”. In: Jacques Derrida/Hélène Cixous, Idiomas da diferença sexual, Trad. Fernanda Bernardo. Coimbra: Ed. Palimage, 49-83, 2018.
DERRIDA, Jacques. “L’aphorisme à Contretemps”. In : Psyché. Inventions de l’Autre. Paris: Ed. Galilée, 1987.
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito: ensaio sobre a exterioridade. Tradução: José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.

*Photo: George Platt Lynes, Lew Christiensen, William Dollar, and Daphne Vane performing Orpheus and Eurydice, 1936.

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