Amores, Comunicações, Florian Orazy

Os amores de Helena

Florian Orazy

V

Bom dia, eu sou seu novo assistente. Sua filha Sarah me encomendou.

Chazinha, deitada no sofá, levanta a orelha. Este som não lhe diz nada, mas ela não rosna; isto não condiz com sua personalidade.

Bem-vinda a sua instalação SmartHome. Conectado a seus equipamentos domésticos, eu posso efetuar várias tarefas. Dar-lhe a previsão meteorológica do dia, regular os níveis de temperatura e de umidade do apartamento, encomendar mantimentos e muito mais.Como você quer me chamar?

Helena está molhando a figueira colocada em cima de um pedestal, no canto da sala de jantar. Sua mão franzina se imobiliza. Ela pensou ter desligado o rádio – não o ouvia há tempos. Onde ele está? Ela larga o regador e se dirige à cozinha.
Lá está, entre a geladeira e as bocas do fogão; de tanto vê-lo, havia dele se esquecido. Ela pega o velho rádio portátil e o coloca em seus ouvidos. Nada. Ela se certifica de que o botão Power está na posição Off, como lhe mostrou Sarah.

Por enquanto, eu me chamo Alex, mas você pode escolher um outro nome para mim. Eu também posso modificar o timbre de minha voz.

Ela retorna à sala. O ruído vem talvez do exterior? Mas as portas-janelas estão fechadas e o vidro duplo filtra tudo. O papel de parede reflete nela seus desenhos já desbotados. Ela jurava, no entanto, que alguém falava com ela.

–  Roberto? É você?

Roberto, por mim tudo bem!

Desta vez, Helena localizou a voz: ali mesmo, na mesa de centro. Uma esfera perolada sobre uma toalhinha de centro, do tamanho de uma grande bola de Natal. Ela não tinha visto a esfera. Apoiado na grande bola, um envelope com uma nota escrita: “Mamãe”.
Ela abre o envelope sem pressa.
“O assistente poderá te ajudar agora que estou longe. Se você não gostar dele, deixe-o de lado, eu o devolverei à loja. Me ligue se precisar. Beijos, Sarah.”
Helena se joga no sofá perto de Chazinha, uma mão afetuosa que procura mecanicamente a pelugem de suas orelhas.

–  É só o que me faltava, minha nossa, por essa eu não esperava.

IV

–  A manteiga acabou.

Você quer que eu lance um pedido de compras? A geladeira está quase vazia.

Helena volta um olhar terno em direção à mesa de centro.

–  Obrigada, Roberto.

Você precisa deixar Chazinha sair, ela precisa se aliviar.

A cachorra está, na verdade, em pé, patas dianteiras contra o vidro quente da janela. Ela olha sucessivamente para Helena e para a mesa, com seus olhos negros úmidos de súplica.

–  Você tem razão. Você pode abrir para ela?

A porta desliza, Chazinha salta e corre para a varanda. Ali acabou se tornando seu banheiro, já que Helena não pode mais descer as escadas como gostaria. Helena se joga em sua poltrona olhando sua cachorra apreciar o sol amarelo. Atrás, depois da colina, os conjuntos habitacionais enfileirados em gradientes até a costa

– A buganvília parece seca.

Desculpe por não conseguir cuidar dela.

– Está ótimo assim! Minhas plantas são problema meu, não preciso que você meta suas patas gordas em tudo.

A bola perolada permaneceu impassível, embora Helena tenha jurado que a viu corar.

– Brincadeira, Roberto! Eu amei tanto suas mãos.

Ela silencia por um momento, sonhadora, e então caminha em direção à janela panorâmica.

– Venha Chazinha, vamos entrar!

A cachorra gira uma última vez sobre si mesma, geme de pesar e então parte para se enroscar entre as pernas de Helena que a acaricia abundantemente.

– O que eu queria fazer mesmo?

Você falava em regar a buganvília.

Helena se vira e se revira sobre si mesma, perplexa.

Ela está na varanda.

Seu rosto se ilumina.

– Mas sou uma besta mesmo! Meu querido Roberto, eu não sei o que eu faria sem você…

III

O farfalhar de um andar pesado, irregular, faz Chazinha se levantar. Helena aparece na sala de jantar, com um roupão e pantufas.

Bom dia, Helena.

Ela tem um sobressalto. A bola fica vermelha e depois violeta e azul. Ela não dá atenção a isto. Ela rasteja até a cozinha. A cachorra salta do sofá e, com o rabo abanando, vai se esfregar na perna de sua dona sem receber nenhum carinho. Helena está em outro lugar. 

Eu não ousei deixar Chazinha sair.

Ela franze as sobrancelhas.

– Depois de tanto tempo, você não sabe que eu bebo café?

Um instante se passa antes da resposta do assistente.

É claro.

– Chazinho, é para velhos!

Ela ri com gosto.

Eu me expressei mal. Chazinha queria brincar lá fora.

Helena abaixa enfim seu olhar em direção à sua cachorra, como se estivesse surpreendida com sua presença.

– É verdade que ela se chama Chazinha… Certo, abra a porta para ela.

A porta da varanda se abre e a cachorra sai correndo. Com a mão trêmula, Helene pega um filtro de dentro de uma caixa de metal e o coloca na cafeteira. Então ela abre e fecha as gavetas e armários, um após o outro, balançando a cabeça e bufando.

O café está lá em cima, sobre o prato rotativo.

– Eu não sei onde estou com a cabeça hoje…

Enquanto a máquina vibra, Helena se senta no sofá. Ela se afoga na onda além da varanda, até o pedaço de mar decupado entre as paredes lascadas.

– Roberto, não hesite em abrir para a cachorra. Aqui é sua casa.

Obrigada, Helena. Farei o meu melhor.

– Há quantos anos você está aqui, hein? Eu não sei mais. Você se lembra, você?

Minha inicialização data de quarenta e dois dias. Eu ignoro a data em que Sarah me comprou.

Helena ri.

– Você me faz rir! Deve estar perto de cinquenta anos! Ou cinquenta e dois? Deveríamos olhar a certidão de casamento. Ah, meu pai amado, já não é mais como antes, isto é certo, eu não posso mais te abraçar. Mas, sinto prazer em te ouvir e em saber que você está perto de mim.

Estou feliz em te dar satisfação. É muito importante para mim.

– Eu ignoro o porquê te colocaram nessa bola e como eles fizeram isto, mas eu espero ter o direito à minha bola também quando passar dessa para melhor. Assim, eles me colocarão ao teu lado. Só precisaremos de uma toalhinha de centro maior…

Eu não sei se isto será possível, Helena.

– E por que não ?

Ele responde mas ela não escuta mais. Ela já esqueceu de suas próprias palavras.
Chazinha irrompe na sala, ainda louca com suas brincadeiras. Ela coloca suas duas patas sobre os joelhos de Helena que sorri a ela com um ar de cansaço.

– Não se preocupe, minha Chazinha, eu não te deixarei sozinha.

Ela se inclina para frente para beijar sua cachorra que lhe lambe a bochecha.

II

Pela porta aberta, um sopro de vento entra na sala, sacudindo as folhas da figueira e as franjas rendilhadas da cortina. Helena está quase deitada no sofá, no meio das almofadas tombadas. Chazinha dorme, focinho sobre os joelhos dela.

Helena?

Helena?

Helena treme, dá um longo suspiro.

São quatro e dez da tarde.

Ela murmura algumas palavras com uma voz quase inaudível, sem nem mesmo abrir as pálpebras.

Você está dormindo desde a hora do almoço. Você está bem?

– Eu creio que sim…

Você tem certeza?

Ela se levanta, abre os olhos.

– Apenas um pouco cansada…

Ela se alonga lentamente, faz carinho em Chazinha que levanta a cabeça.

– Roberto?

Sim, Helena.

– Se eu for me deitar mais cedo essa noite, você poderia regar minhas plantas?

Seria preciso me conectar a um sistema de irrigação.

– Eu poderia comprar um.

Claro. Será preciso montá-lo e conectá-lo à minha interface.

– Isto me tiraria um peso das costas…

Vou procurar.

– Eu também gostaria de um distribuidor de ração. Um grande.

Os modelos mais volumosos podem armazenar cerca de dez quilos de alimento, ou seja, cerca de cinquenta porções.

Ela tira um pedaço de papel e uma caneta da cômoda, rabisca alguns números. Graças aos trezentos e vinte e um euros de sua aposentadoria, todas as loucuras são possíveis.

– Compre o máximo que puder. E também fontes de água.

Você se ausentará?

Helena fita por um instante a bola, desconfiada.

Sarah me pediu para avisar caso você saia de casa. Ela se preocupa com você.

– Deixe-a em paz, ok? Ela está longe, ela tem sua própria vida. Contanto que as plantas e Chazinha estejam indo bem, não há mais nada que ela possa fazer por mim …

Seu bem-estar é o que mais me importa.

– Você ama as minhas plantas, hein, Roberto?

Claro, Helena.

– E Chazinha?

Ao escutar seu nome, a cachorra levanta uma orelha, olhos fechados. Helena dá leves batidinhas no topo de sua cabeça.

Amo muito Chazinha.

– Então, está tudo bem. Eu, eu te amo Roberto.

Eu também, Helena.

I

A cozinha, a sala de jantar e a sala estão repletas de distribuidores e fontes de água, dispostos como a infantaria de um exército silencioso. Chazinha ronca no sofá. Na mesa de centro, uma grande toalhinha oval, nova em folha, substituiu a renda amarelada. A bola perolada está ali, sozinha. Sua superfície vibra e então ecoa em um tom estridente. Depois de muito tempo, tudo para e uma voz surge.

Mamãe?

Chazinha acorda. Ela levanta a cabeça, circunspecta.

Mamãe? Eu tentei te ligar várias vezes. O assistente me disse que você o chama de Roberto, como Papai. Eu espero que seja uma brincadeira. Seja como for, me ligue porque estou começando a me preocupar e eu realmente não tenho tempo de passar aí agora. Beijos.

O silêncio recai como um sopro no calor do dia. Lá fora, sob uma calha conectada a um imponente reservatório de água, as deslumbrantes flores de buganvílias oscilam do rosa ao dourado com a brisa do mar.

Venha Chazinha, é hora de almoçar.

A cachorra remexe o rabo. Ela reconhece a voz de seu mestre.

No recipiente de um distribuidor, uma cascata de ração é derramada. Chazinha corre em direção ao montinho assim formado, que ela devora avidamente.

O que devemos dizer?

Chazinha se habituou rapidamente à comida seca, após anos de guloseimas pastosas e açucaradas de Helena. Ela deve saber que não há escolha.  

Devemos dizer “Obrigada Roberto!”

Chazinha late e em seguida rodeia a mesinha. Sua cauda quase derruba a xícara de café colocada sobre a toalhinha de centro, logo ao lado da bola. Do fundo da porcelana se espalha, de forma quase imperceptível, o cheiro de um resíduo da borra.

Ela dá uma super lambida na esfera branca e volta à sua ração.

Esta noite, vamos te dar banho. Senão, ao acordar, Helena dirá que eu não cuidei de você. E ela vai me jogar no lixo como seu eu não prestasse.

Fim

Image: Yayoi Kusama, Love is calling, 2013.

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