por Diego dos Santos Reis
Professor de Filosofia da Educação
UFPB – Brasil
Hoje, 7 de dezembro de 2020, completam-se quase 1000 dias sem respostas. 1000 dias, 33 meses sem saber quem mandou matar a vereadora Marielle Franco e a quem interessava a sua morte. Armadilha, emboscada, cerco, como quiserem chamar, uma mulher, preta, parlamentar, lésbica, favelada, mãe da Luyara foi ASSASSINADA, repito. Eis o mistério do crime que paira sob a República da Barra da Tijuca.
Faz quase 1000 dias, estávamos reunidos na Abbaye d’Ardenne, em Caen, para o Rencontre Doctorale du Centre Michel Foucault, em março de 2018. À noite, li a fatídica notícia em um jornal eletrônico. Reli. Lia entre incrédulo e desesperado aquela palavra fria: EXECUTADA. Vitimada pela pena de morte sumária. No quarto compartilhado, chorei, com os olhos repletos de vazio, diante de meu colega iraniano, que me olhava sem compreender ainda o que se passava. Chorei porque conhecia trabalho de Marielle e acompanhava a sua militância há alguns anos. Foi para ela o meu voto nas eleições municipais de 2016, junto às 46.501 pessoas que se uniram à maré cheia de esperança e luta dessa fala franca e combativa. Chorei porque era uma quarta-feira no Rio de Janeiro e eu estava distante e o inverno do nosso descontentamento tomava toda paisagem. Ali, no Estácio – bairro que traz no nome as heranças nefastas da colonização –, exposta no banco de trás do carro, sob a chuva e os raios, o corpo de Marielle sangrava, perfurado por um projeto genocida, brutal, virulento, que não dá trégua para os corpos negros. Para uma mulher negra.
Hoje, a milícia, o tráfico, a narcomilícia, a igreja, a mídia, o necro-pentecostalismo, as bancadas da bala, do boi e da bíblia, cujo projeto de poder converge para necropolítica pública, o ecocídio, a terra arrasada, seguem ditando as regras do jogo (de azar). Como tratar da revolta diante dos revólveres engatilhados, cada vez mais modernos, que enchem de pólvora e buraco as superfícies de corpos insurgentes, que confrontam a desordem e os retrocessos vigentes? Marielle, gigante, tornou-se um símbolo, um significante – o brado incendiário, o urro contra o som dos coturnos que pisam os ossos, em marcha, com botas lustrosas banhadas de sangue, de versículos e pólvora. Aqui, na minha íntima revolta, penso no que terá pensado ela nesse derradeiro instante… o choque, a chuva, o vento, o peito aberto, covardemente abatida, quando denuncia a permanência dos porões, da porrada e das bancadas corruptas que prometem novos mundos e produzem apocalipses.
Na beira da vida, que lhe escorria por entre os dedos, por cada furo sangrado, como não sentir o impacto de cada uma dessas balas em nossos sonhos; no projeto igualitário e antirracista, para impedir que balas perdidas encontrem os mesmos corpos de sempre; na voz que enfrenta, afrontosa, e diz que não será interrompida por um bando de machos escroques, canalhas? Ela, que não foge à luta, que não teme a própria morte, agora, assassinada, enquanto nas salas pútridas de Brasília, as hienas e os abutres bolsobárbaros quebram placas e comemoram (cedo demais) a sua queda.
que futuro?
Na garganta, no gargalo, armados até os dentes – covardes –, a mesma fossa, o mesmo fosso de sempre: o abismo, a vala comum de nossa história, a memória amnésica de um país pavimentado sobre o sangue pisado de Marielles, Cláudias, Ágathas, Dandaras, Marias, mães, irmãs e nossas senhoras desaparecidas, em marés cheias e complexos que aglutinam a força devastadora do patriarcado escravagista, dos militares, milícias e necropolíticos que, com seus capitães-do-mato, produzem o superávit do capital ao custo do déficit de vida negras, indígenas, trans, travestis, femininas.
Revolta? A exigência intransigente da justiça. Insurgente: sem contingências, moderação ou rendida aos acordos retóricos da república.
Hoje, aqui, você espera que eu traga alguma resposta, respiro, reviravolta anunciada. Mas não tem sido fácil respirar. Nem escrever sem te perguntar, sem me questionar o que nós temos feito para acelerar o fim desse mundo? Desse sistema-mundo que se nutre da morte. O globo da morte de tudo. As revoltas emergem, pipocam no mundo, com as mãos nuas, os punhos cerrados. Foi preciso que vissem, obscena, a apineia, a asfixia, para ecoarem o grito contra o intolerável: o desespero de ver pisado como coisa, por um policial branco, um cidadão negro, sob os holofotes de câmeras digitais filmando, ao vivo, aos vivos, o ASSASSINATO de uma PESSOA.
No Brasil, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Ao terminar de ler esse texto, mais uma vítima terá sido executada. Pelo Estado brasileiro? Pelo carcereiro? Nas quebradas de Paraisópolis? Nos becos da Mineira? Mestre Moa, João Alberto, Amarildo, o pedreiro que foi desaparecido por policiais militares de uma unidade de pacificação. Os dados revelam números de guerra em um cenário supostamente democrático: a cada ano, 23.100 jovens negros, em sua maioria com idade entre 15 a 29 anos, são assassinados no país. São 63 homicídios por dia, em média. Um a cada 23 minutos, repito, epidermicamente suspeitos. Como o Johnatha de Oliveira, filho da Ana Paula, morto pelas mãos de agentes públicos do Estado brasileiro, na Favela de Manguinhos, pela polícia mais letal do Brasil, a do Rio de Janeiro. A cada 4 mortes cometidas pela polícia brasileira, 1 é na cidade da girl from Ipanema. Aqui, onde moro, é também o estado no qual a polícia mais morre. Entre mortos e feridos, vencedores e vencidos no cotidiano das quebradas, a maioria dos corpos caídos no chão são de homens negros, os principais alvos do genocídio antinegro na diáspora.
Naquele dia, 14 de maio de 2014, às 16h30, quando Johnatha voltava para casa, eu, que trabalhava numa escola vizinha à comunidade de Manguinhos, na FIOCRUZ, escutava o estampido das balas traçantes, que rasgavam a tarde. Eu me pergunto se não teria ouvido o disparo que atingiu Johnatha, de 19 anos, nas costas. A bala trucidou o peito da mãe, da irmã e das tias, mulheres que, desde então, não cessam de denunciar violações que devastam gerações, destroem trajetórias. Histórias interrompidas pelos projéteis de armas de fogo, que concretizam o projeto do Estado brasileiro: “tem que mirar na cabecinha e… fogo!”, repetia o ex-governador da cidade, afastado do cargo em 2020, por corrupção e desvio da verba pública destinada à saúde, em plena pandemia.
É de tirar o fôlego, sim, você sabe bem. O Brasil também é recordista mundial em violência contra população LGBTTQIA+. É o país onde há o maior número de pessoas trans e travestis assassinadas no mundo. Morte matada. Expectativa de vida: 35 anos[1] – metade da média nacional. No país do samba, simpatia e futebol, a cada duas horas, uma mulher é assassinada – 68% delas são negras, segundo o Atlas da Violência[2] de 2020. É o caso de Marcinha Shokenna Bastos da Silva, mulher trans de 28 anos, encontrada morta com marcas de pauladas em sua casa, em Maricá, região metropolitana do Rio, em 14 de junho deste ano. Ninguém foi preso. Só nos primeiros oito meses de 2020, já foram registrados mais assassinatos de mulheres trans e travestis no país do que todo ano de 2019[3]: 129. Crime de ódio. Impunidade. Revolta.
Entre 2018 e 2019, foi registrado um aumento de 150% nos números da violência contra as populações indígenas e quilombolas, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário[4] (Cimi). No meio do caminho do agronegócio, tinha uma aldeia, um quilombo. Ruralistas, grileiros, posseiros, mineiros, possuídos pela sanha colonial-capitalista não pensam duas vezes. E… Fogo! Derrubam os campos, queimam as florestas, os povos do campo, envenenam rios e nascentes. Dia do fogo. Eles falam a língua da morte, do des-matamento, do matadouro. No início de 2020, em torno de 180 famílias Guarani e Kaiowá foram violentamente acossadas por seguranças privados em Dourados, no Mato Grosso do Sul. O confronto com os lacaios-milicianos de fazendeiros durou 16 horas e terminou com sete indígenas feridos por balas de borracha e projéteis de arma de fogo. Entre eles, uma criança de 12 anos, que perdeu três dedos da mão esquerda ao manipular uma granada deixada para trás pela polícia, que também agiu de forma truculenta contra os povos indígenas.
Quem policia a polícia?
Ainda no início de 2020, dois quilombolas são cruelmente assassinados em Arari, no Maranhão. Celino Fernandes e Wanderson de Jesus Rodrigues Fernandes, pai e filho, lideranças da associação quilombola do Cedro, foram mortos com tiros no rosto, em sua própria residência, invadida por quatro pistoleiros. Celino e Wanderson haviam denunciado o conflito entre a comunidade e os grileiros da região, que tomam e cercam terrenos públicos para criação de búfalos. A cerca, o cercado, o cerco. Encurralados. Quilombo isolado. A emboscada para asfixiar a vida. A dívida brasileira impagável. A repressão do Estado que aperta o gatilho. Zumbi resiste. Revolta.
Em O Negro Revoltado[5], que reúne os anais das sessões do I Congresso do Negro Brasileiro, realizado em 1950, Abdias Nascimento, um dos maiores intelectuais brasileiros de todos os tempoespaços, é incisivo ao remexer as feridas abertas do colonialismo, para expor a herança purulenta de violência racial e sexual que se perpetua nos corpos eviscerados e nas veias abertas da Améfrica Ladina. No chão dessa Améfrica, nas trilhas de outra intelectual incontornável para o pensamento social brasileiro, Lélia Gonzalez, são abertas as valas comuns do esquecimento, onde jazem os indigentes, inominados, enquanto milicianos e generais batizam as ruas da cidade, premiados por darem cabo dos corpos epidermicamente inferiorizados. Congratulação por manterem intactos os privilégios da supremacia branca – a mesma que, por mais de 300 anos, enriqueceu ao custo do açoite da carne, da morte, do capital, do capitão-do-mato, como aquele que, hoje, (des)governa o país – implodir! Desmilitarizar exércitos ávidos, absolvidos, inflamados, todos os bandidos de terno e gravata – sórdidos – que incendeiam a mata, a aldeia e o quilombo, com sua política mórbida de terra arrasada. R-E-V-O-L-T-A.
Foi Lélia quem mostrou que o racismo é a “sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira”[6]. Os efeitos violentos do elemento recalcado, que deve ser tirado de cena, não deixam de se apresentar obscenamente naquilo mesmo que imagina ocultar. Isso é o que re-volta. Oculta-se o sintoma porque há quem se beneficie dele. Ocultam-se os cadáveres. A negação revela que o contrato racial assassino segue funcionando a todo vapor, alimentado pelos restos mortais produzidos pelo aparelho repressivo. Nenhuma democracia racial efetiva: “a negritude se acha inscrita no signo da morte no Brasil”[7], desvela Sueli Carneiro. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”, questionava Marielle.
Você me pergunta, uma vez mais, o que é a revolta? O que é esse retorno, esse revólver engatilhado de que falo, esse retorno rebelde que revolve a terra, afronta, dá voltas, gira? Você me conta que motim, levante, insurreição, rebelião, sublevação, insubmissão e rebeldia, estrondo, estouro, fuzuê e bulício são sementes de insurgência. Pede que eu me volte sobre eles. Revolvo. Por que tantos vocábulos, percebe?, mobilizados para denunciar o inadmissível? Para que tantas palavras reinventadas, lançadas ao vento, tantas lutas, legados? Arrisco: para gestar o que, com elas, foi silenciado. Cosmopotências, cosmopolíticas, cosmoinsurgêngias ancestrais voltadas à memória das revoltas sem registro, dos gritos abafados com chumbo, das revoltas dos Búzios, Carandiru, Araguaia, Carrancas, Chibata, Malês…
Isso não impediu, contudo, que outras revoltas se sucedessem em 1809, 1810, 1814, 1816, 1822, 1826, 1827, 1828 e 1830. As penas de morte, deportação e açoites em público com que se viam contemplados seus líderes não pareciam intimidar os negros […]; pelo contrário, pareciam servir de estímulo ao espírito libertário trazido e herdado da Mãe África, desvelando plenamente a crueldade do sistema que o subjugava[8].
É o que Abdias, em pronunciamento de 14 de maio de 1998, na tribuna do Senado Federal, recorda, revisita e rememora – re-volta – em seu elogio à Revolta dos Malês, levante de pessoas negras escravizadas, ocorrido em Salvador, na Bahia, em 1835. Revolta é resistência. É dar forma política à experiência subjetiva da injustiça, nos ensina Abdias, nosso ancestral. É combate, confronto, no front aberto da recusa em colaborar com os opressores. Revolta é ação. Recriação que tensiona as bases excludentes, discricionárias, autocráticas e autoritárias de ordenamentos, institutos e governos que funcionam respaldados pelo terror – de Estado, em todas as suas poker faces, contrafaces, interfaces. Contra a coisificação que explora e mata, a revolta nomeia, denuncia, expropria e responsabiliza. Exige justiça. Afirma direitos, às vezes, contra o Direito vigente. Nega tudo o que mina a potência de vida e tortura e mata. Diz sim à legítima defesa dos vivos contra os mitos que ressurgem, de tempos em tempos, para legitimar a execução sumária, a prisão arbitrária, a política sectária como senha para a sanha autoritária. Mas nenhuma revolta define a revolta. Talvez o seu elemento mais corrosivo e concreto seja também o mais difícil de enunciar e de descrever: a potência do tempo porvir; a semente de vida multiplicada, disseminada, teimosa.
À porta, os assassinos nos esperam. Necrófagos, vorazes e velozes, rapinantes e raptores, sobrevoam as ruínas imensas de restos de carne estraçalhada. E riem, sem máscaras. Produzem, nas moendas urbanas, citadinas, policialescas, o substrato de sua opressão grotesca. A ré-história do país que se revolta contra colônias, catástrofes e torturas correntes. Na re-volta que sabe: amanhã vai ser maior. O eterno retorno. Na revolta que ressoa na denúncia das palavras (sus)surradas de Cacaso, em seus jogos florais:
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre[9].
[1] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-de-35-anos-metade-da-media-nacional/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-de-35-anos-metade-da-media-nacional. Acesso em: 16 nov. 2020.
[2] Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020 Acesso em: 20 nov. 2020.
[3] Disponível em: http://www.generonumero.media/assassinato-trans-aumento-2019-2020/ Acesso em: 16 nov. 2020.
[4] Disponível em:https://cimi.org.br/2019/09/a-maior-violencia-contra-os-povos-indigenas-e-a-apropriacao-e-destruicao-de-seus-territorios-aponta-relatorio-do-cimi/ Acesso em 20 nov. 2020.
[5] NASCIMENTO, Abdias. O negro revoltado. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982 (1968).
[6] GONZALEZ, Lelia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: ___. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Flávia Rios e Márcia Lima (Org.). 1ª. edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 76.
[7] CARNEIRO, Sueli. Em legítima defesa. In: ___. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011. p. 92
[8] NASCIMENTO, Abdias. Pronunciamento de Abdias Nascimento no Senado Federal em 14/05/1998. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/226536 Acesso em: 16 nov. 2020.
[9] CACASO. Lero-lero. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 158.
*Photo: Marielle Franco
by Mídia Ninja