Cosmopolíticas, Ficção e Realidade, Cassiana Stephan

Uma breve reflexão sobre crítica, desobediência e responsabilidade

Um ensaio,
por Cassiana Stephan

O exercício crítico da autarquia ou da autarquia como crítica [1] nos faz distinguir entre aquilo que depende e aquilo que não depende de nós, como disse o estoico Epicteto [2], mas também nos faz perceber que nem tudo o que acontece está sob nossa alçada e, portanto, que se apropriar de si mesmo não é dar-se conta de toda e qualquer condição que constitui e modifica o si. A concepção de que nem tudo o que nos acontece está ou deve estar sob nosso controle, abre-nos à percepção do mundo e dos outros que dele participam, isto é, descentraliza-nos de nós mesmos e mostra que a prática da autarquia se articula à crítica na medida em que esta nos insere em um complexo jogo de responsabilização, o qual pode ser pensado a partir de três determinações indicadas por Frédéric Gros na tentativa de responder à questão que pergunta “até qual ponto desobedecer é responsável?” [3]

Trata-se, em primeiro lugar, da responsabilidade absoluta ou da responsabilidade pelo acontecimento, explicada por Gros através de uma provocação de Epicteto que diz: “isto que depende de você, não é o que te acontece enquanto tal. Não dominamos o curso das coisas. As doenças e as riquezas, a felicidade dos próximos ou os sucessos pessoais, a reputação e os reconhecimentos sociais, os prazeres e os desprazeres (…). O que absolutamente depende de mim, no entanto, é o sentido que vou dar a isto que me acontece.” [4] Em segundo lugar, Gros fala da figura da responsabilidade infinita ou da responsabilidade pelo frágil e, “dessa vez, eu sou colocado na presença de um ser vulnerável: uma criança frágil, uma pessoa desamparada, um anônimo que chora. (…) Difícil de passar por seu caminho, impossível de pensar em passar por seu caminho. Eu me encontro prisioneiro do sofrimento do outro. (…) Eu sinto pesar sobre meus ombros, a carga de ter que lhe ajudar e de ter que lhe proteger infinitamente.” [5] Em seguida, Gros nos conduz à responsabilidade global ou à responsabilidade pelo mundo como a ideia de que “nós somos solidários às injustiças produzidas aqui e lá. Solidários no sentido de que não é possível, a um certo nível do ser, fingir que elas não nos concernem. (…) Então, impossível de permanecer indiferente, impossível de agir como se o distanciamento geográfico, a distância social, a impotência política pudessem nos isentar de reagir no mundo.” [6] Frédéric Gros também nos explica que podemos pensar a responsabilidade como a falta em relação “a uma instância que me ultrapassa, que me transcende, uma superioridade maiúscula (Deus, o Juiz, a Lei, a Sociedade, minha Consciência, etc.).” [7] Sabemos que este aspecto da responsabilidade ainda nos perpassa, na medida em que nem sempre nos desvencilhamos, completa ou parcialmente, da prepotência metafísica e ontológica do Outro. Contudo, não podemos negar que a responsabilidade como falta nem sempre está em consonância com os outros feixes da responsabilização, ou seja, paradoxalmente, responsabilizar-se pela falta pode implicar na desresponsabilização pelo acontecimento, pelo frágil e pelo mundo, de tal modo que neste ponto talvez seja preciso desobedecer para ser responsável. Dito de outro modo, neste ponto precisamos desobedecer às normas fundamentadas na superioridade maiúscula de Deus, da Razão, do Juiz, da Lei, da Sociedade e da Consciência fálica para simultaneamente nos responsabilizarmos pelo sentido que damos àquilo que nos acontece, pela vulnerabilidade que nos circunda e pela pluralidade do mundo no qual habitamos.

Os três primeiros feixes da responsabilização, quando vinculados criticamente, parecem concordar entre si e nesta concordância confrontar, transgredir e subverter os termos da responsabilidade como falta. Existe tanto uma complementaridade entre a responsabilidade pelo acontecimento, pelo frágil e pelo mundo quanto uma tensão entre estas e a responsabilidade como falta. O complexo jogo entre complementaridade e tensão pode ser deslindado através da crítica, já que ela nos faz refletir sobre o modo pelo qual nos constituímos e nos desconstituímos em nossas relações com os outros, com os esquemas de inteligibilidade que as estanciam, com o mundo no qual nos circunstancializamos e que, ao mesmo tempo, nos circunstancializa – não para traçar nossos destinos e sim para nos interpelar. A partir disso, somos capazes de entender que a crítica não revela aquilo que definitivamente somos: pelo contrário, ela nos mostra que não somos nada de definitivo à medida que traz à tona alguns de nossos traços relacionais, os quais são ao mesmo tempo sociais e psíquicos. Logo, também somos capazes de entender que a autarquia não tem por finalidade a absoluta soberania de si por si mesmo, ou melhor, não se trata de um autocontrole obsessivo e egoísta. Diferentemente, trata-se de dominar por meio da crítica o si que já é sempre outro, ou ainda, o si que graças à crítica se torna outro em meio ao complexo jogo da responsabilização.

Ora, se a crítica nos responsabiliza por nós mesmos e pelo mundo em que hoje vivemos, então ela nos responsabiliza pelos outros com os quais compartilhamos a nossa existência.  Mas, como podemos ser responsáveis por nós, pelo mundo e por todos ao mesmo tempo, quer dizer, neste tempo que é o presente? E quanto aos outros pelos quais nos responsabilizamos, eles estão isentos da prática da autarquia? Estas questões remontam à pergunta que Butler se coloca a partir de Adorno, a saber, como viver uma boa vida em um mundo que é miseravelmente organizado? [8] Para tais perguntas não há uma única resposta e por este motivo a crítica se mantém como um trabalho contínuo, dado que a todo momento o complexo jogo da responsabilização se modifica, sobretudo se constantemente nos esforçamos para nos mantermos responsáveis por nós mesmos como parte de um mundo plural. A responsabilidade por si como parte do mundo plural possui uma dimensão ético-política que, muitas vezes, confronta os pressupostos codificadores ou codificados da moral que prescreve a obediência. Então, neste caso, no caso daquelas e daqueles que hoje se percebem como parte do cosmos, não podemos negar que agir criticamente é responsabilizar-se pela urgência da revolta que interrompe a miséria atrelada à apatia e à submissão. [9]

 

[1] O conceito de “crítica” é aqui abordado em termos foucaultianos, ou seja, entendo o exercício da crítica como:  “a arte da inservidão voluntária, aquela da indocilidade refletida.” (FOUCAULT, Qu’est-ce que la critique ?, 2015, p.39)

[2] “Entre os entes, há os que dependem de nós e os que não dependem de nós” [Τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ’ ἡμῖν, τὰ δὲ οὐκ ἐφ’ ἡμῖν] (EPICTETO, Encheirídion, 2012, 1.1)

[3] GROS, Désobeir, 2017, p. 205.

[4] Ibidem., p.207-208.

[5] Ibidem., p.209.

[6] Ibidem., p.210.

[7] Ibidem., p.209

[8] (BUTLER, Can one lead a Good life in a Bad Life?, 2012)

[9] FOUCAULT, « Inutile de se soulever ? » in : Dits et Écrits II, nº269, 2001.

*Photo: Francis Colline, Our Bus 151, 2020

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