Cosmopolíticas, Ficção e Realidade, Rafael Barros

Sobre a deselitização do pensamento ou Por uma educação antirracista

Uma breve reflexão em dois atos

por Rafael Barros
@psicopreto_

INTRODUÇÃO 

Meu objetivo aqui é trazer à tona uma breve reflexão acerca do olhar educacional sobre os corpos que sempre foram vistos como “menores” e incapazes de serem incluídos nas pautas pedagógicas. Meu pensamento está voltado para uma educação antirracista, nesse sentido, estou atento ao fato de que a evasão escolar das pessoas negras é muito maior, já que elas não se sentem incluídas no modo como o saber é disseminado. Em sua maioria, as pessoas negras não se sentem representadas, contando com um número muito pequeno de educadores.as negros.as. O fato é que não somos representados e representadas porque a maioria de nós não chega nem mesmo a terminar o ensino básico. Por que isto ocorre? Por que os corpos negros ainda ocupam os subempregos, a miserabilidade e a maior taxa de mortalidade? Esses problemas são agravados pela falta de oportunidade e de inclusão da população negra nos métodos de aprendizado, fazendo com que muitos abandonem a escola para se introduzirem no mercado de trabalho informal, já que estudar, muitas vezes, não é a prioridade. Como dizia a cantora brasileira Elza Soares, na canção “A Carne”, de 2002, composta por  Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti: “A carne mais barata do mercado é a carne negra.”

Ato 1. A SEPARAÇÃO DO PENSAMENTO

Para analisarmos as desigualdades que estão enraizadas na sociedade brasileira, é necessário investigar as estruturas passadas, principalmente as do pensamento, que vão atingir diretamente o modelo educacional do tempo presente, ocasionando a desqualificação da população pobre e negra. Para começarmos a refletir sobre a separação do pensamento (ou pelo pensamento) entre os detentores da razão e os irracionais, menciono aqui a visão filosófica do século XIX. Volto-me, sobretudo, à “virada do século”, que ocasionará a mudança do Império para a República, bem como uma transformação no caminhar da sociedade brasileira, sob influência do pensamento europeu. 

Mais precisamente, o que aconteceu (e ainda acontece) é o seguinte: no início do século XIX, adentramos no chamado “mundo moderno”, influenciados pela filosofia positivista, que foca no pensamento lógico e científico. Nesse tempo, a ciência começa a ter um papel fundamental na progressão social, contudo, vale perguntar: quem era abarcado.a por esta intelectualidade científica? Será que, nesta época, a população negra estava inserida nas pautas do saber, inserida como sujeito capaz e detentor de saber? A princípio, não, pois as negras e os negros eram vistos como cidadãos inatuantes, ou seja, não fomos incluídas e incluídos no dito “mundo moderno” porque éramos considerados.as irracionais.  

O movimento abolicionista não foi exceção à regra; pautado pelo lema liberal da “liberdade, igualdade, fraternidade”, seu caráter humanitário não passou de aparência: “promovida principalmente por brancos, ou por negros cooptados pela elite branca, a abolição libertou os brancos do fardo da escravidão e abandonou os negros à sua própria sorte”. No curso da República Velha, a “máquina de compressão das liberdades públicas” foi incansável. Inicialmente no bojo da luta pelo poder entre presidentes militares e parte da elite que precisava da autonomia dos estados e, pouco depois, como resposta oficial aos movimentos de trabalhadores, a decretação do estado de sítio foi prática corrente de sucessivos presidentes que suprimiram as leis ordinárias e submeteram o país ao regime de guerra sempre que encontraram oposição aos interesses que representavam. (PATTO, 1999, §13)

E a pergunta persiste: será que ainda somos considerados e consideradas irracionais? Esta questão precisa ser colocada e recolocada, pois é necessário frisar que ainda hoje possuímos uma conexão muito forte com as ideias implementadas pelo homem branco e da elite, as quais excluem outras formas de saberes, formando uma sociedade patriarcal e racista, construída pela visão uniforme da existência, onde subjetividades distintas não são consideradas. 

Ato 2. POR UMA SABEDORIA DECOLONIAL

A colonização trouxe grandes mudanças para o caminhar do Brasil – neste processo, diversos saberes foram excluídos, como aqueles dos povos originários e aqueles das negras e negros trazidos da África. No contramovimento da colonização e a partir de mulheres que atuam diretamente na base do pensamento antirracista, quebrando com o pacto da branquitude (como diz a filósofa Djamila Ribeiro), afirmo e reafirmo a potência da intelectualidade negra. Com base nesta afirmação, exercito minha imaginação: imagine se nas escolas o debate acerca destas pensadoras negras fosse introduzido, pequenas leituras de reflexão… você não acha que os jovens e as jovens negras se sentiriam incluídos.as e teriam vontade de continuar estudando? Que eles/elas perceberiam que o mundo do pensamento também é deles/delas?

A pensadora e feminista negra Lélia Gonzalez nos dá uma perspectiva muito interessante sobre esse tema, porque criticava a hierarquização de saberes como produto da classificação racial da população. Ou seja, reconhecendo a equação: quem possuiu o privilégio social possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e universal de ciência é branco. A consequência dessa hierarquização legitimou como superior a explicação epistemológica eurocêntrica conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade do que seria conhecimento válido, estruturando-o como dominante e, assim, inviabilizando outras experiências do conhecimento. Segundo a autora, o racismo se constituiu “como a ‘ciência’ da superioridade eurocristã (branca e patriarcal).” Essa reflexão de Lélia Gonzalez nos dá uma pista sobre quem pode falar ou não, quais vozes são legitimadas e quais não são.  (RIBEIRO, 2017, p.16)

Para que vocês entendam onde quero chegar com minha breve reflexão em dois atos, digo com toda a clareza de minha razão negra que quero convidá-las e convidá-los a pensar a autoestima do corpo preto, isto é, com vocês quero refletir: como o corpo preto se coloca no espaço e de que modo ele vai se desviando de todos os “troncos” que não lhe trazem boas memórias? 

“O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes, sangra.” (KILOMBA, p.1, 2008) A pobreza não é só monetária, mas também intelectual, fazendo com que pessoas negras não consigam bons empregos em função do alto índice de baixa escolaridade desses corpos. “Uma história de vozes torturadas, línguas rompidas, idiomas impostos, discursos impedidos e dos muitos lugares que não podíamos entrar, tampouco permanecer para falar com nossas vozes.” (KILOMBA, p.27,2008). Até agora, referenciei aqui pensamentos de Grada Kilomba, mulher negra e psicanalista, que através de seus escritos tem mostrado as verdadeiras sequelas que o racismo causou na alma e nos corpos das pessoas pretas; são marcas muito mais profundas do que imaginamos e que estão entranhadas no inconsciente da alma e do corpo, sendo com grande frequência causa de suicídio, já que os jovens negros e as jovens negras são os/as que mais tiram suas próprias vidas por nunca se verem e se sentirem representados.as pelo sistema. A importância só é dada quando o corpo preto é legitimado pelo corpo branco e para isto precisamos dizer: Basta!

Retrato da “Escrava Anastácia”

“A máscara, que a escrava Anastácia foi forçada a usar, recria esse projeto de silenciamento e controla a possibilidade de que colonizados.as possam um dia ser ouvidos.as e, consequentemente, possam pertencer.” (KILOMBA, p.33, 2008) Por isso, pessoas negras precisam falar e ocupar posições que lhes permitam pensar sobre seus próprios corpos na sociedade. Sigo acreditando que o objetivo da sociedade contemporânea – dominada ainda por homens brancos cis – é gerar corpos consumistas, pois as reflexões acerca das desigualdades sempre ficam de lado. Hoje, o objetivo é “ter” – ter dinheiro para consumir conhecimento, cultura, saber, poder, fama – e este objetivo do “ter” ofusca o desenvolvimento de um olhar crítico que olha para a multiplicidade do mundo que nos circunda. Tal atitude reforça a dominação escravocrata moderna, porque sabemos muito bem que só o branco pode “ter” e que, para que o branco tenha, nós não podemos “ter”. 

Portanto, não é sobre “quem”, mas sobre “como”. No limite, o que vem sendo desautorizado pelos ativismos do lugar de fala é um certo modo privilegiado de enunciar verdade, uma forma particularizada pelos privilégios epistêmicos da branquitude e da cisgeneridade de se comunicar e de estabelecer regimes de inteligibilidade, falabilidade e escuta política. Não é que brancos não possam falar de racismo, ou as pessoas cis não possam falar de transfobia, é que elas não poderão falar como pessoas cis brancas: isto é, como sujeitos construídos conforme uma matriz de produção de subjetividade que sanciona a ignorância, sacraliza o direito à fala, secundariza o trabalho da escuta e naturaliza a própria autoridade. Isso significa também o fato paradoxal de que eles não poderão falar como se não fossem cis e brancos, isto é: apagando as marcas da própria racialidade e conformidade de gênero, a fim de agir como se os privilégios da branquitude e da cisgeneridade não fossem coextensivos aos sistemas de opressão das vidas e vozes não brancas e trans. (MOMBANÇA, 2007, §2)

Mas qual é a importância do lugar de fala? Do lugar de fala para todos os saberes marginalizados, esquecidos e subversivos? Assumir o lugar de fala, apropriar-se dele é focar naquilo que o corpo negro pode nos dizer. Quando falo de “lugar de fala”, lembro-me da transmissão de experiências que era comum nas tribos africanas. Este tipo de comunicação sempre foi vista como “menor” pelos colonizadores europeus, ou seja, a oralidade tribal, ancestral, subversiva é relegada à “indiferença” social por não estar no patamar “intelectual” dominado pelos brancos. O “lugar de fala” do corpo negro é sensorial, desviante e nada cartesiano. Mas, convenhamos, a fala está longe de ser reta, ela sempre será desviante, pois cada um tem suas próprias experiências e subjetividades. Nesse sentido, talvez possamos afirmar que a oralidade do branco, sempre baseada na reprodução científica de saberes intelectualizados e academicistas, dificilmente cria algo de novo no mundo.

A luta negra, encabeçada sobretudo pelo feminismo negro, que há décadas busca resgatar a voz das excluídas e dos excluídos, faz com que os saberes afros sejam legitimados e com que possamos sair dessa lógica da supremacia branca em todos os âmbitos da vida, especialmente no âmbito dos jogos de saber. O negro e a negra sempre foram considerados inferiores por nunca terem tido voz, logo eles e elas não eram dignos de produzir conhecimento. Este silogismo barato não pode nos convencer. Por isso, afirmo que o reconhecimento e a importância do preto e da preta na sociedade dependem da intelectualização desta raça que sempre foi inferiorizada. Ocupemos, pois, os espaços do pensamento crítico! 

REFERÊNCIAS BIBBLIORÁFICAS:

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Editora Cobogó: Rio de Janeiro, 2019.

MOMBAÇA, Jota. Notas estratégicas aos usos políticos do conceito de lugar de fala. 
Disponível em:
https://www.buala.org/pt/corpo/notas-estrategicas-quanto-aos-usos-politicos-do-conceito-de-lugar-de-fala

PATTO, Maria Helena Souza. Estado, ciência e política na Primeira República: a desqualificação dos pobres. Estud. av., São Paulo, v. 13, n. 35, p. 167-198, 1999.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/vfdbdpstqSj3P9gLWcFRs7g/?lang=pt

RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Editora Letramento: Belo Horizonte – MG, 2017. 

You may also like...