Revoltas, Boris Gobille

Política da escrita entre as vanguardas literárias em Maio-Junho de 1968

por Boris Gobille
(Professor de Ciências Políticas, École Normale Supérieure de Lyon/ TRIANGLE – França)
Tradução de Cassiana Stephan

Gostaria apenas de ressaltar as principais diretrizes de minha pesquisa sobre o compromisso político dos escritores franceses durante os eventos de Maio-Junho de 68.

Meu objetivo era mergulhar naquela época de forte politização do campo intelectual e da literatura na França. Eu queria revisitar o que Jacques Rancière e os acadêmicos franco-canadenses Jean-François Hamel e Julien Lefort-Favreau chamam de “Política da Literatura”, mesmo que fosse mais apropriado usar o termo “Política da escrita” na medida em que a obra literária pura era substituída por escritos políticos coletivos.

Desde o começo, minha preocupação era simples: o que os escritores fazem durante as crises políticas? O campo literário é influenciado pela generalizada influência de questões políticas no quadro daquilo que o cientista político Michel Dobry chama de “conjunturas críticas”? Alguns pesquisadores têm explorado essa questão, por exemplo Gisèle Sapiro, relativamente às transformações do campo literário francês durante a ocupação nazista. Mas nenhum trabalho deste tipo foi feito acerca de Maio-Junho de 68.

Fiquei bastante insatisfeito com a maioria das pesquisas sobre o compromisso dos escritores franceses em Maio-Junho de 1968. Por duas razões, pelo menos.

Muitos trabalhos em História focaram nos compromissos políticos dos intelectuais franceses, mas, na maioria das vezes, a crise Maio-Junho de 68 foi tratada:

– seja como uma continuação da longa história de compromissos políticos dos intelectuais franceses desde o caso Dreyfus, como se cometer fosse uma espécie de segunda natureza amplamente independente dos contextos precisos nos quais ocorre.

– ou como um mero exemplo das inclinações ao marxismo, de posturas revolucionárias ou esquerdistas que caracterizaram os intelectuais franceses desde os anos 1950 / Segunda Guerra Mundial, antes de se afastarem de tais posicionamentos, ou seja, antes que seu intenso compromisso fosse substituído pelo que foi chamado de “crise da Intelligentsia francesa” ou o de “o silêncio dos intelectuais” nos anos oitenta.

Estas duas razões levaram os pesquisadores a prestar pouca atenção à crise de Maio-Junho. Eu, pelo contrário, tentei centrar meu estudo na própria crise e, mais particularmente, nas lógicas específicas a cada situação que teria moldado o compromisso político dos escritores.

Segunda insatisfação: nestes estudos, os escritores são sempre considerados como intelectuais e não como escritores, isto é, indivíduos pertencentes ao campo literário e dedicados à obra literária. Mesmo no ensaio de Bernard Brillant Les clercs de 68, que trata apenas da crise de Maio-Junho de 68, apenas 10 páginas são dedicadas aos compromissos dos escritores com os eventos. É claro que nos deparamos com vários escritores em outras partes de seu livro, mas todos eles são assimilados como intelectuais.

Essa insatisfação me levou a me concentrar apenas nos escritores, pois assim eu poderia considerar a lógica específica a seus respectivos comportamentos no decorrer dos eventos de junho-maio de 68. Também estudei como eles tentam ou não combinar o fato de serem escritores com o fato de serem revolucionários.  

Em suma, minha intenção foi a de prestar atenção na relação entre a crise, Maio-Junho de 68 e um campo, a saber, o campo literário. As posturas dos escritores devem ser analisadas como resultado tanto da lógica específica do evento quanto de suas posições no campo literário. Portanto, tentei combinar a sociologia do campo literário à sociologia das crises políticas, tal que pensadas pelo cientista político francês Michel Dobry.

O que exatamente está em jogo neste encontro?

O evento de 68 ocorreu em um momento em que o campo literário vivia o que se denomina de “crise da literatura”. Em particular, o “autor” foi descrito em 1967 por Roland Barthes como um resíduo de uma ideologia burguesa obsoleta e Roland Barthes assegurou que “o autor” agora estava morto. Ao fazer isso, o estruturalismo atacou o “princípio básico da história da literatura”, ou seja, “o autor”, mas também noções como “obra”, “intenção” e até mesmo “literatura”.

Antoine Compagnon, professor de literatura no Collège de France, afirmou que durante Maio-Junho de 68, desafiar todos os tipos de autoridade, por exemplo a autoridade simbólica do autor ou da “autoria”, estava em completa harmonia com a derrocada do “autor”. Portanto, as vanguardas literárias estruturalistas deveriam ter sido o primeiro e mais forte apoio ao movimento de Maio-Junho de 68. No entanto, aconteceu o contrário. Por quê?

Para responder a essa pergunta, precisamos voltar aos atributos específicos da crise de Maio-Junho de 1968.

Uma das reivindicações mais importantes desta rebelião foi libertar a criatividade de todos. Este programa foi inspirado nas doutrinas surrealista, situacionista e anarquista, e alimentou o que Luc Boltanski e Eve Chiapello chamaram de “crítica artística do capitalismo”. Para o Mouvement du 22 mars, a criatividade das bases era a principal arma da revolução. No dia 19 de maio, o comitê de ação “Freud-Che Guevara” afirmou que a luta deveria buscar um sistema socialista onde a criatividade de todos pudesse ter rédea solta. A comissão “Nous sommes en marche”, integrante do comitê de ação do Censier, também afirmou em seu famoso “Thèses”: “Graças à criatividade de todos, surgirá uma nova cultura e uma nova ideologia”. Já em 22 de abril, a comissão “Cultura e criatividade” do Mouvement du 22 mars escreveu: “a criatividade é a coisa mais amplamente compartilhada no mundo, como provam as crianças. Os gestos lúdicos das crianças são poesia, exprimem uma harmonia perfeita entre a subjetividade e o mundo que encaram. Essa harmonia é nosso ideal revolucionário. Permitir que a criatividade de todos se expresse em cada etapa da vida é o que nossa revolução deve alcançar.”

Esta concepção de revolução, baseada na criatividade, teria permitido que escritores e artistas se sentissem legítimos para participar, ao contrário da tradição leninista que suspeita que eles são agentes da burguesia.

No entanto, as coisas não eram tão claras. Na verdade, a criatividade era considerada revolucionária, desde que não fosse privilégio de poucos felizes, mas de muitos. Em 1967, o situacionista Raoul Vaneigem escreveu que a criatividade, “é a coisa mais compartilhada do mundo e é igualmente concedida a todos”.

Portanto, não podemos considerar a criatividade como prerrogativa de escritores ou artistas apenas. Fazer isso significaria aceitar a divisão social do trabalho, algo contra o que os situacionistas lutaram, mas também muitos grupos em Maio-Junho de 1968; do mesmo modo, eles lutaram conta a “separação” e a “especialização” de maneira geral. Em outras palavras, distinguir entre especialistas (de palavras) e não especialistas, os qualificados e não qualificados, não era mais válido. A propriedade simbólica foi abolida.

Deixe-me lhes dar alguns exemplos.

No dia 16 de maio, enquanto ocupavam o Théâtre de l’Odéon, o comitê de ação revolucionária do Mouvement du 22 mars afirmou em um texto intitulado “A imaginação toma o poder”: “teatro, cinema, pintura, literatura e assim por diante, são indústrias monopolizadas por uma ‘elite’ para os propósitos do capitalismo e da alienação. Sabote as indústrias culturais! Ocupe e destrua instituições! Reinvente a vida! Você é a arte! Você é a revolução!”

As vanguardas foram abordadas de forma ainda mais direta: no dia 20 de maio, o comitê de ação situacionista «Rue Bonaparte, Les Inconnus» opôs-se à “falsa e alienada criatividade de pessoas que se consideram artistas de vanguarda”.

Este desafio não se reduzia às palavras, ele era algo muito mais tangível. Assim, em folhetos, panfletos e cartazes, nas paredes e nas ruas, muitas pessoas escreveram slogans políticos e aforismos poéticos. Claude Roy os definiu como “escritores de parede”, Alain Jouffroy “inscrivains” (“inscritos”). Roland Barthes considerou que eles escreviam um “discurso selvagem”, invenções de estilo e a alegria de escrever eram a marca registrada de Maio-Junho de 68. No início de junho, o jornal diário Le Monde publicou alguns dos “poemas de Maio”, e a jornalista Jacqueline Piatier glorificou um novo tipo de poetas que ela chamou de “poetas anônimos”.

Vejamos o quão paradoxal era a situação das vanguardas literárias:

– elas foram obrigadas a tomar uma posição, sob pena de violar sua identidade revolucionária;

– elas foram autorizadas a fazê-lo graças à redefinição da criatividade como ferramenta e objetivo revolucionários;

– no entanto, elas não poderiam se comprometer se não se livrassem de seu privilégio simbólico como autores.

Essa situação é, de certa forma, irônica. A criatividade ganhou um novo poder profético e revolucionário. Mas, esse poder profético era estranho: não estava conectado a nenhuma figura de profeta. Era anônimo, coletivo e democrático. Havia uma lacuna entre o poder simbólico – quero dizer, por exemplo, o poder simbólico das palavras para remodelar a realidade – e o “capital simbólico”, como diria Bourdieu, que era privado de qualquer tipo de legitimidade.

E este é o ponto: o que sobrou nas mãos das vanguardas literárias quando, como dizia Michel de Certeau, toda uma “multidão se tornou poética”? O que foi deixado em suas mãos “quando a poesia dominou as ruas” (Andrew Feenberg)? Como elas poderiam responder a essa democratização radical da criatividade e da escrita?

Essa é a questão que pretendo abordar em meu livro, Le Mai 60 des écrivains : crise politique et avant-gardes littéraires.

Os eventos pegaram as vanguardas estruturalistas como Tel Quel desprevenidas. Embora o “autor” tenha morrido temporariamente em Maio-Junho de 1968, não foi a partir de uma base estruturalista e teórica que Tel Quel, de Barthes, foi promovida, mas a partir de uma base prática e concreta, ou seja, assumida por muitos. Tel Quel conseguiu uma posição de destaque como a vanguarda mais “avançada” pouco antes de Maio-Junho de 68, promovendo o “texto” no lugar do “autor”. Sua “política da literatura” consistia no “trabalho textual”. Afirmava que o “trabalho textual” era a única forma de descobrir e combater as formas linguísticas de sujeição, alienação e opressão capitalistas.[1] Afirmava também que a revolução implicava rompimento com a linguagem burguesa e que tal revolução linguística implicava uma “ciência da escrita” baseada no conhecimento estruturalista e marxista. Na véspera de Maio-Junho de 68, esta declaração parecia ser a vanguarda do trabalho de vanguarda. Mas em Maio-Junho, parecia muito elitista. A tomada da fala por muitos foi espontânea e não conectada a qualquer tipo de reivindicação teórica. A criatividade era assunto de todos, não de um pequeno grupo de escritores que alegavam estar acima da média. Portanto, os membros da Tel Quel não podiam se ver nos rebeldes. Eles não tinham escolha a não ser manter sua posição. Afirmaram que a tomada da palavra e todas as formas culturais da criatividade espontânea e democrática que se manifestaram durante o mês de Maio-Junho de 68 não passaram de uma recaída pequeno-burguesa.

Ao contrário, os que lideraram o comitê de ação dos estudantes-escritores – Maurice Blanchot, Marguerite Duras, Dionys Mascolo e vários integrantes do grupo surrealista – sintiam-se sintonizados com esta crítica à distinção entre especialistas e não especialistas. Embora muitos deles fossem famosos, eles decidiram não atuar mais como escritores, mas como militantes revolucionários. Eles afirmavam que “escritor” ou “autor” era uma identidade miserável. Para eles, ser reconhecido como escritor era uma espécie de engano. Eles consideravam a noção de “o autor” como um truque pelo qual a burguesia separava os intelectuais das bases e privava muitos da capacidade de falar e da legitimidade para escrever. Eles queriam renunciar à sua reputação para novamente encontrar o discurso anônimo. A única maneira de ser um verdadeiro revolucionário era se juntando às massas e escolhendo o que Blanchot chamou de “não- personalidade”. Em 1967, em entrevista à revista surrealista L’Archibras, Duras já havia se oposto à distinção entre especialistas e não especialistas, profissionais e não profissionais, pressupondo que distinguir entre escritores e não escritores era inaceitável, na medida em que escrever era uma necessidade fundamental para todos. No início dos anos 60, o próprio Jean-Paul Sartre havia declarado que um dia não haveria mais escritor, mas apenas homens e mulheres que, entre outras coisas, escreveriam. Afirmou que seria mais autêntico, pois a necessidade de escrever é absoluta para todos. Ele acrescentou: “Nós, escritores profissionais, fingimos que temos um mandato e as pessoas nos deixam escrever porque elas mesmas gostariam de escrever. Fingimos ser os escolhidos. Mas isto é uma mentira.” Nesse sentido, em Maio-Junho de 68, os escritores do Comitê de Ação de Estudantes-Escritores se colocaram em pé de igualdade com os membros que não eram escritores. Acima de tudo, eles se dedicaram a experimentar uma escrita coletiva, anônima, igualitária, revolucionária. Eles o chamaram de “comunismo da escrita”. Ao fazer isto, eles pretendiam minar qualquer tipo de autoridade e abolir hierarquias de todos os tipos. Eles também buscavam por uma “escrita da recusa” que pudesse incitar o movimento revolucionário a recusar, permanentemente, qualquer tentativa de construir uma organização ou partido forte ou de definir um programa revolucionário: para eles, a questão era permanecer, tanto quanto possível, no exato instante em que o curso da história estaria suspenso. Qualquer outra atitude abriria caminho para a degeneração da revolução. Isso é o que eles explicaram diversas vezes em seus textos e explicaram novamente em seus textos flamejantes.

Menciono rapidamente outra posição, a do Sindicato dos Escritores, fundado em 21 de maio de 1968. Seus membros não estavam em sintonia com a postura do Tel Quel, pois concordavam com a tomada de palavra da base e com a abolição de hierarquias simbólicas entre a criatividade de base e o trabalho literário. Discordaram também da condenação da figura do autor pelo Comitê de Ação Estudantes-Escritores. Você não deveria ter vergonha de ser um escritor, diziam, porque os escritores também são trabalhadores. Escritores estão sujeitos à alienação, por exemplo: de fato, o sistema capitalista permite que eles acreditem que são diferentes das bases apenas para separá-los da classe trabalhadora; o sistema capitalista permite que acreditem que são gênios, espíritos puros, acima das contingências materiais, para explorá-los. Portanto, os membros do Sindicato dos Escritores resolveram ocupar a sede da Société des gens de lettres para construir um sindicato – segundo o modelo dos sindicatos –, que pudesse defender seus interesses e, aliados à classe operária, ingressar no movimento revolucionário movimento e participar da revolução. Um deles, Jean-Pierre Faye, disse também que os escritores revolucionários entraram em greve, mas em uma greve específica: a greve da escrita pessoal, do trabalho pessoal. Durante os eventos, eles escreveram apenas folhetos e textos sobre a figura do autor como trabalhador. Isso não impediu Jean-Pierre Faye e outros (Jacques Roubaud e assim por diante) de construir, ao mesmo tempo, quero dizer, em 1968, uma nova vanguarda literária, “Change”, mas seu primeiro número foi publicado apenas no outono de 1968. De certa forma, Change compartilhava da crença de Tel Quel no poder simbólico das palavras para remodelar a realidade e fazer a revolução acontecer. Mas, segundo eles, esse poder não era propriedade apenas da vanguarda literária, mas também de todos. Finalmente, sua política de escrita era dupla: reunir escritores em um sindicato que se opunha à alienação e exploração capitalistas e buscar uma literatura que emprestasse sua energia da criatividade de Maio-Junho de 68 e suas ferramentas do mais avançado trabalho teórico em linguística.

  • Conferência apresentada em Maio de 2018 na Maison Française d’Oxford.

[1] Jean-François Hamel, « Qu’est-ce qu’une politique de la littérature ? Eléments pour une histoire culturelle des théories de l’engagement », in Laurence Côté-Fournier, Élyse Guay et Jean-François Hamel (dir.), Politiques de la  littérature.  Une  traversée  du  XX  e   siècle  français,  Montréal,  Presses  de  l’Université  du  Québec,    coll. « Figura », 2014, p. 22.

 

*Photo:
“Soyez réalistes, demandez l’impossible”, slogan pixado sobre uma ponta de Paris em 3 de maio de 1968 © Getty / GERARD-AIME / Gamma-Rapho
Fonte: www.franceinter.fr

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