Revoltas, Fernando Botton

Reflexões performativas sobre a revolta e a revolução nas marchas de 2013

por Fernando Botton
Professor de História, UESPI
Brasil

  • 2013 – Ruídos

Senti que o pavio de um barril de pólvora foi acesso quando foram anunciados reajustes na tarifa do transporte público em muitas capitais brasileiras. Os poucos centavos de aumento forçaram a população mais carente a desembolsar até 40% de seu salário mínimo apenas para locomoção pessoal. O sentimento de humilhação evoluiu para um estado de indignação, fúria e revolta, conduzindo milhões de pessoas a tomarem as ruas em protesto. Não se tratava de uma especificidade brasileira, o mundo vivia sob a esteira da Primavera Árabe, do Ocuppy Wall Street, dos Anonymous, dos indignados espanhóis e da refrescante euforia com a preemente possibilidade de mudar algo do mundo por meio da reivindicação popular. Na ocasião em que tais marchas foram deflagradas eu estudava em Curitiba e estava em meio a uma aula sobre Martin Heidegger, bastante incomodado com a dissonância entre as ideias abstratas da nossa torre de marfim e aquilo que ocorria nas ruas.

No dia posterior faltei às aulas de filosofia para participar dos protestos, ao chegar nos agrupamentos fiquei absolutamente atordoado com a polifonia das pautas elencadas. Eram movimentos de muitas pessoas indignadas, cansadas e revoltadas com muitas coisas: o aumento da tarifa era apenas uma parte, também havia quem se posicionasse contra os impostos, a política tradicional, a presidenta, a copa do mundo, os outros movimentos participantes, o excesso de violência policial, a insegurança pública, a grande mídia, além daqueles que, ao não saberem exatamente o motivo de sua revolta, marchavam contra tudo que consideravam errado. Na ocasião, meu pragmatismo político me deixara completamente decepcionado ao conceber que aquela marcha com potencialidades revolucionárias fora eclipsada tanto por uma quantidade de pautas individualistas que tentavam se apropriar simbolicamente daquelas revoltas com o objetivo de faturar ganhos eleitorais ou midiáticos, até mesmo para promover pautas fascistas e antipolíticas.

Nesse sentido podemos pensar na polêmica gerada ao redor dos black blocs, que causaram alvoroços ao apedrejarem instituições, vitrines, estações de ônibus e quaisquer símbolos que aludissem ao Estado ou ao capitalismo. As discordâncias se instalavam entre os distintos grupos, de um lado aqueles que preferiam manter uma imagem cívica e familiar da marcha ao bradarem “sem violência”. Do outro, aqueles como eu que consideravam os apedrejamentos simbólicos, estéticos, ou até mesmo necessários para que a revolta se fizesse incômoda, ouvida e efetiva.

Os ruídos comunicacionais se fizeram mais opressores quando a grande mídia passou a separar o joio do trigo. De um lado, qualificava o grupo dos protestantes pacíficos como patrióticos, ordeiros e ponderados, especialmente aqueles que bradavam pelo enforcamento da então presidenta eleita nas tripas do último esquerdista no poder. Do outro lado, enquadravam-se os vândalos, violentos e baderneiros que selvagemente depredavam os bens públicos e privados, acabando por macular a pureza da verdadeira marcha a redimir e purificar os destinos da velha política nacional.

Não tardou para que essa seleção moral adentrasse em nossos resquícios ditatoriais de suplício e punição chamados de batalhões de polícia militar (ironicamente atuando na sociedade civil). Muitos protestantes, transeuntes ou simpatizantes passaram a ser capturados, aprisionados, julgados e condenados pelo simples fato de serem enquadrados na categoria de vândalos ou mesmo por possuírem vinagre balsâmico, na tentativa de respirar ao insuportável ambiente tomado por spray de pimenta. Também foram presos aqueles que tentaram se esquivar das saraivadas de balas de borracha – flagrante insubmissão e desacato à autoridade – especialmente estudantes, negros e populações das periferias urbanas e sociais. No decorrer dos dias barricadas foram levantadas, pessoas feridas, internadas, algumas até assassinadas, pela justificativa de estarem do lado negro da revolta. Já os alvos cidadãos de bem, ordeiros e pacíficos, passaram a adotar cada vez mais uma crescente tonalidade antipolítica, especialmente pela ascensão de um nacionalismo ufanista que nascia na metáfora do Brasil como um gigante que antigamente adormecera e agora: acordou. Nesse momento percebi que já não entendia mais o que ocorria, quaisquer matrizes conceituais já não me eram suficientes, tudo aparentava que talvez tivesse sido melhor ter ficado na universidade lendo o enfadonho Martin Heidegger a clamar por esse temeroso gigante.

Dessa experiência intelectual, subjetiva, ética e política restou o desejo de realizar alguma reflexão, do motivo pelo qual uma revolução coletivista não ocorreu, ou o que poderia explicar aquela profusão toda de ideários. Como historiador decidi estudar brevemente alguns arquétipos daquilo que poderia ser considerado enquanto uma revolução para assim pensar em algo que poderia explicar aquele efusivo presente experienciado e, talvez, responder à pergunta de Jonnefer Barbosa: “Por que as revoltas, e não as revoluções, passaram a desempenhar protagonismo político e conceitual no século XXI?” (2018, p. 4).

  • 1789 ou 1791 – Arquétipos da Revolução e/ou Revolta?

Utilizar a palavra revolução nas sociedades ocidentais significa referir-se à sua experiência histórica tomada como arquetípica: a Revolução Francesa. Isso porque a cronologia historiográfica disciplinar e disciplinada costuma classificá-la como acontecimento fundante de uma ruptura epocal, que instituiu a fronteira de um antigo regime com uma moderna contemporaneidade. O evento máximo de exaltação cívico-republicana de orgulho pátrio dos franceses apropria-se da narrativa de que os burgueses explorados se sublevaram e marcharam revolucionariamente ao lado da desnuda Marianne contra todas as corruptas monarquias exploratórias. É verdade que pelo o elemento extravasor dessa experiência é possível considera-la portadora de características de levante. Porém, o arquétipo constituído por ela e também evocado pela revolução das 13 colônias britânicas, antes de ser uma ruptura com a modernidade colonial e civilizatória moderna, demonstra certa continuidade das estruturas de poder previamente estabelecidas. Racional, objetiva e previdente a revolução mostra certa oposição ao caráter inusitado das revoltas, já que seu próprio nome prenuncia os claros desejos de realizar uma re-evolução, retomar planejadamente aquele processo considerado retrogrado e seguir com a curva de progresso e desenvolvimento racionais, aplacando as paixões que possam se opor à tal irresistível marcha ao futuro. Nessa crítica retomamos os argumentos do teórico italiano Furio Jesi quando distingue ambas as experiências políticas:

Usamos la palabra revuelta para designar un movimiento insurreccional diferente de la revolución. La diferencia entre revuelta y revolución no debe buscarse en los fines de una y otra; una y otra pueden tener el mismo objetivo: tomar el poder. Lo que mayormente distingue a la revuelta de la revolución es en cambio una diferente experiencia del tiempo. Si, de acuerdo con el significado habitual de ambas palabras, la revuelta es un repentino foco de insurrección que puede insertarse dentro de un diseño estratégico pero que de por sí no implica una estrategia a largo plazo, y la revolución por el contrario es un complejo estratégico de movimientos insurreccionales coordinados y orientados relativamente a largo plazo hacia los objetivos finales, entonces podría decirse que la revuelta suspende el tiempo histórico e instaura de golpe un tiempo en el cual todo lo que se cumple vale por sí mismo, independientemente de sus consecuencias y de sus relaciones con el complejo de transitoriedad o de perennidad en el que consiste la historia. La revolución estaría, al contrario, entera y deliberadamente inmersa en el tiempo histórico (2014, p. 63).

Se a revolução é imersa em seu tempo, então ela não institui uma novidade. Antes de ser fundadora de uma nova contemporaneidade ela apresenta-se como absolutamente moderna, iluminista, liberal, republicana, burguesa, masculina, universalista, eurocêntrica e branca. Sua busca pelo estabelecimento de um objetivo macropolítico específico, pela restituição ordenada de um poder centralizado, sua temporalidade estratégica de planejamento, metodologia, conluio e ação coordenada estabelece uma temporalidade de canalização das indignações variadas no entorno de um foco de consequências políticas previsíveis e controláveis.

Porém, é importante evitar a tentação moderna de instituir pares dicotômicos absolutos: desqualificar as revoluções modernas como oposto das revoltas é perder de vista as possibilidades de dialéticas fundadas em sínteses conectivas, em que teses e antíteses se sustentam sem superação, mantendo-se por meio da adição (e…e…). Se nesse mesmo contexto revolucionário avançarmos apenas dois anos podemos encontrar outro arquétipo notavelmente insurrecional de revolução, aquela ocorrida na ilha caribenha de Santo Domingo em que os escravos afrodiaspóricos em revolta não apenas tomaram o poder político, mas assassinaram os brancos senhores coloniais e queimaram seus rentáveis canaviais, instituindo a primeira revolução e a primeira república do novo mundo. A narrativa historiográfica francófona muitas vezes atribui à Revolução Francesa a casualidade inicial daqueles levantes, como se os escravos são-dominguenses esperassem pelos revoltosos iluministas para exercerem seu ato libertação. Pelo contrário, é possível perceber que os escravos não irromperam uma temporalidade revolucionária de um horizonte de expectativas previsível, seu levante era margeado pela imediata indignação, cansaço, fúria, vingança e desespero. Não havia qualquer previsibilidade além das contingencialidades de um grupo de subalternizados na busca por novas estruturas de existência. Nesse sentido estamos longe de classificarmos as revoltas de Santo Domingo como puramente liberais e iluministas como aquela promovida por seus colonizadores. Obviamente alguns líderes como L´Ouverture se inspiravam nesses valores, mas também havia uma série de intenções díspares no interior daquela revolução, seu futuro não estava definido, apenas sentia-se o desejo de cessar com o antigo sistema necropolítico de escravidão e racismo.

Pelo singular caráter insurrecional e anticolonial daquele levante-revolucionário-escravo é possível reabilitar a simbologia da revolta conotada por Furio Jesi (2014) quando se referia tanto à rebelião escrava do gladiador Espártaco do ano 73 a.c. quanto à Liga Espartaquista alemã que se valeu desse ideário para reivindicar pautas socialistas, antiimperialistas e antimilitaristas em meio à primeira guerra mundial. Nessa leitura a revolta seria protagonizada por minorias subalternizadas em ebulição afetiva e política capazes de instituir uma ação política de temporalidade disruptiva. Essa mesma noção pode ser encontrada no conceito de máquinas de guerra de Félix Guattari e Gilles Deleuze que significa, ironicamente, tudo aquilo que não responde à guerra, antes disso, é “irredutível ao aparelho de Estado […] seria antes como a multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção do efêmero e potência da metamorfose” (2008, p. 12-13). Não por acaso esse arquétipo de rebelião se propagou enquanto novas revoltas-revolucionárias-escravas que passaram a circular nas demais colônias escravagistas, inclusive no Brasil, que tem como exemplos históricos a Revolta dos Malês realizada por escravos muçulmanos em Salvador no ano de 1835; a Balaiada em que sertanejos e escravos se revoltaram contra as elites maranhenses por três anos (de 1838 a 1841); a Revolta da Vacina no Rio de Janeiro em 1904 em que pessoas pobres reagiam contra políticas urbanísticas e sanitárias que iniciaram o processo de favelização da cidade e das populações; e, talvez, as marchas de 2013.

  • 2013 – Revolução e/ou Revolta?

Por essa breve reflexão histórico-genealógica posso retomar a experiência política brasileira já com um entendimento diferente, que apresenta características comuns e elos de ligação entre presente-passado. Portanto, lançamos uma interpretação que por ser política já é, imediatamente, performativa. A revolta nesse arquétipo haitiano-espartaquista não significa apenas um estado psicológico de indignação e fúria, mas irrupção de novas temporalidades, deslindamento de ações de ruptura, subversão, transgressão, afetividade, em uma palavra: é um transbordamento com aberturas infinitas. Diferente da revolução, a revolta não possui necessariamente uma causa visível a ser perseguida, seu estopim pode ser acionado com 20 centavos a mais no transporte público ou pelo assassinato de George Floyd, João Alberto, João Pedro ou qualquer uma dessas vidas inaceitavelmente sacrificáveis e pouco choradas que cotidianamente lemos com amargor e torpor nas manchetes de algum jornal de segunda categoria. Portanto, suas causas são dadas pelo cansaço, indignação, ódio e sensação de injustiça, desse acúmulo de fatores represados impulsionam-se transbordamentos de multiplicidades grupais, eminentemente heterogêneas, e que marcham juntas em eminente rechaço ao racismo, machismo,  à militaresca brutalidade fascista estatal e paraestatal, a falta de sentido ético-político-afetivo do capitalismo neoliberal, a escravidão cotidiana, etc. exigindo a irrupção de novas temporalidades que significam justamente o solo de construção de outras experiências subjetivas e existenciais.

Compreender a revolta, tanto pelo espectro da revolução branca, quanto pelos levantes espartaquistas nos permite reler aquelas manifestações de 2013 como efusão de múltiplos sentidos, uma vez que não representavam um espectro político específico, não eram comandadas por uma liderança em especial e tampouco possuíam qualquer nível de previsibilidade. Elas carregavam sentidos ambíguos, simultaneamente revoltosos e revolucionários. Um coletivo de indignações tão diversas que não haveria possibilidade para uma identidade representacional. O que não significa ocultar o protagonismo e presença de pessoas afrodescendentes, subalternizadas, periferizadas, portadoras do sangue das mesmas negras escravizadas nas fazendas haitianas, bahianas, maranhenses e cariocas, que seguem até hoje em cotidiano exercício de luta pela sobrevivência frente ao degradante capitalismo colonial e neocolonial contemporâneo. Tais minorias eram prenhes de uma revolta previamente abortada. Por outro lado, também marchavam em 2013 setores da classe média-alta nacional peles brancas e serviçais negras. Sobrenomes de elite, centralidade social, urbana e econômica que também demonstravam indignação e revolta, mas incapazes de lançar novas temporalidades para além da dimensão macropolítica concretizada com o golpe de 2016 e as eleições de 2018. No interior daquela marcha conviviam várias revoltas e projetos de revoluções, sendo brutalmente aplacadas quando configuravam aqueles arquetipos haitiano-espartaquenses. Outras espécies de revoluções foram ensejadas, financiadas e propagandeadas, especialmente aquelas que replicavam as indignações do cidadão de bem, pai de família, branco, cis, de classe média, que se prostravam contra a depredação das propriedades estatais e privadas, além de clamarem pelo caráter divino-patriótico-familiar da marcha. Praticamente toda polarização política vivida contemporaneamente no país pode ser compreendida como herdeira desses projetos em pugna. Apresar de todos os aprisionamentos e repressões violentas, da ascensão de uma extrema direita fascista na presidência, das mortes por coronavirus e da Amazônia em chamas ainda convivemos com vigorosos movimentos antifascistas, sem-terra, sem-teto, indígenas, ambientalistas, de mulheres, trans, animalistas, de resistência negra e periférica. Se na vulgata freudiana o reprimido sempre retorna, poderíamos também afirmar que no Brasil o represado segue transbordando.

 

Referências

BARBOSA, Jonnefer. Novos Espartaquismos. São Paulo: n-1 edições, 2018.

JESI, Furio. Simbología de la revuelta. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2014.

GUATTARI, Félix. DELEUZE, Gilles. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. (Vol.5). São Paulo: Editora 34, 2008.

*Photo: Gustavo Basso, Brasil-Revoltas, 2013

You may also like...