por Chelsea Largent
Doutoranda em Literatura Comparada pela CUNY – USA
Tradução de Thomas Vieira
- Introdução
Não admitimos com facilidade a importância da meditação sobre o ódio. De muitas maneiras, eu diria que não o percebemos como um afeto de um ser racional e intelectual. Ele é até mesmo vergonhoso, um sentimento simples e infantil. No entanto, o ódio é de alguma forma o sentimento mais banal e normal gerado a partir da severa alienação dos outros que “deveriam” nos amar.
Parece que vimos a face do ódio este ano, contorcida e convencida, continuamente reproduzida em várias telas para as quais nos pegamos olhando, para as quais direcionamos toda a nossa atenção. Nesses contextos, a face do ódio sempre nos parece totalmente suja e gratuita… distanciada de nossas experiências, de nossos rostos, que não podemos imaginar distorcidos daquela maneira particular ou consumidos (como dizemos) por um sentimento tão vergonhoso e desagradável.
Em 7 de junho, marchei no Brooklyn, Nova York, como muitos esquerdistas fizeram, com milhares de outros protestando contra os assassinatos violentos de negros nos Estados Unidos, ato (este do protesto) que de tão entrelaçado à ideia do Estado-nação, não existe sem Ele. Não quero romantizar este evento ou qualquer um dos protestos e marchas que pareceram transformar a cidade de Nova York em um centro de revolução por meses, só quero deixar clara esta conexão inextricável, entre o Estado-nação e a Revolta.
Marchamos lado a lado, todos descumprindo a ordem que prescreve que permaneçamos em casa, todos quebrando o toque de recolher que, desde a Segunda Guerra Mundial, nunca mais havia sido imposto pela cidade. Marchamos em busca de solidariedade, ansiando por alguma forma de fazer sentido, de participar e de mostrar respeito e apoio às negras e aos negros. Enquanto marchávamos ao som de uma bela música – canções e gritos de raiva marcavam o tempo. Ademais, helicópteros circulavam acima de nós no céu, observando-nos. Carros de polícia se moviam lentamente atrás de nós. Simultaneamente, motoristas locais paravam o tráfego em nosso apoio, torcendo; gritos e escritos justos e raivosos vinham dos prédios, fogos de artifício iluminavam o céu. Era como se uma bela forma do caos emergisse sobre nós… mas tudo isso teve uma vida muito curta. Esta sempre foi uma atuação controlada, eles estavam esperando o anoitecer, esperando a chance de prender todos para negar a existência de uma comunidade. Para evidentemente incitar a violência e esmagar qualquer dissidência.
À medida que o sol se punha e avançávamos em direção ao toque de recolher da noite, marchávamos por um túnel perto da ponte Williamsburg, no Brooklyn, alinhados a policiais, a uma força armada com equipamentos táticos de nível militar. Eles haviam fechado a ponte com barreiras e, enquanto caminhávamos, eles seguravam suas enormes armas perto do coração. Milhares de nós estávamos passando pelo túnel. Os brancos se moveram para o lado de fora para proteger aqueles do meio que precisavam ser protegidos de um estado tão odioso contra seus corpos, estado que visa destruí-los. Sabendo disso tudo, fui para o lado de fora do grupo e com a experiência privilegiada de ser branca, olhei diretamente para os olhos de um dos policiais.
Neles eu vi um ódio que eu já tinha visto antes. Este rosto de um homem branco, que parecia ter cerca de 30, talvez 20 anos, mal controlava suas emoções e, no face-a-face, seu rosto se tornou o rosto de um homem que um dia havia abusado de mim, um homem marcado por um tipo específico de fúria, agitando-se sob a superfície e tentando chegar ao topo. Eu estava imaginando tudo isso? Perguntei-me se este policial estava reagindo aos gritos e berros que proferiam “ABANDONE SEU EMPREGO?” Ele percebeu que estava cheio de medo? Ele estava respondendo à minha face e a dos outros? Qual foi a condenação que se fixara em minha testa? O julgamento? A raiva de milhares de pessoas? Os rostos tensos, exigindo um desafio talvez; era como se nós o questionássemos: “Como você pôde ficar do lado deles? Você é humano? Eu sei exatamente quem você é e não tenho medo de você. Pessoas fizeram coisas com o meu corpo que você jamais poderá imaginar. Você. Não. Me. Assusta.”
Em retrospecto, percebi que naquele momento, eu tinha encontrado ele: o ódio exaltado. Não é tanto o ódio pela polícia ou pela instituição do Estado fascista e racista, representado por estes homens, que é revelador para mim, isto não é para mim um sentimento novo; aqui, o que mais me surpeendeu foi o lugar de onde este ódio veio, foi isto que me acertou em cheio. O ódio passou pelo rosto de um ex-agressor; foi isto que me arrancou do presente e me jogou para o momento em que meu corpo sofreu um grande trauma. Desloquei-me para um momento em que um outro humano tornara o meu corpo abjeto e transpus tal sentimento à face deste policial que não conheço, cheio de medo e de ódio, mantendo-se ali firme, diante de mim, segurando sua arma, combatendo um povo que está apenas pedindo por justiça. Que narrativa ele usou para se martirizar? Como ele fez essa mesma cara do meu agressor?
Na verdade, este não é um texto sobre os abusos que sofri, nem mesmo sobre a polícia ou sobre os protestos deste verão, que são obviamente importantes. Este é um ensaio sobre a natureza do ódio como um afeto inerentemente misógino. Como um afeto que funciona tal que um lubrificante para aquilo que Foucault chamou de sujeição. Este tipo de ódio racista e misógino diretamente se liga, enquanto afeto, ao medo e estou particularmente interessada tanto na relação mítica entre uma força policial militarizada, identificada principalmente ao sexo masculino, e a retórica pública que se atrela às maneiras pelas quais essa força policial serve para proteger as “mulheres” de “nossa nação”, quanto na problemática da massificação que tal categoria acaba incentivando.
Por outro lado, busco por mídias e meios de arte ou articulação que permitam a um sujeito falar fora dessas categorias “massificadas”. Para mim, tais articulações estão na linhagem da autoficção e, em última análise, das narrativas pessoais de sobreviventes de violência de raça, gênero e conjugais. Aqui, pretendo teorizar um testemunho literário que possa falar fora de tais categorias. Em suma, em vez de rejeitar o pessoal, como a academia costuma fazer, ou pensar no pessoal apenas em termos de políticas de identidade mordazes e campos de estudo facilmente categorizáveis, escrevo e penso sobre de que modo, como intelectuais, como estudiosas e estudiosos, podemos integrar e validar o campo do pessoal não apenas como testemunho, mas como um meio de modificar identidades e dar forma a nossa própria pesquisa, filosófica ou não.
Utilizando o conceito foucaultiano de massificação biopolítica em consonância à atualização pós-humanista de Rosi Braidotti, este artigo repensa de que maneira a teoria queer contemporânea, focando em formas relacionais de subjetividades que existem para além dos parâmetros construídos pelo capital (gênero sendo um destes parâmetros), resiste à sujeição (Foucault). A linguagem da relacionalidade e os momentos de autocompreensão renegociam os limites biopolíticos do sujeito corporificado, ela prevê um imaginário social que perturba categorias normativas atreladas à experiência corporal e individualizada dos sujeitos.
- Desprezo
Sara Ahmed, em The Cultural Politics of Emotion, pensa no afeto do ódio como algo perigoso porque ele pode ser distribuído. Em uma definição inicial, ela descreve o ódio como um afeto que “não reside em um sujeito ou objeto determinado. O ódio é econômico: circula entre significadores, sempre em relações de diferença e deslocamento”. [1]
Então, o ódio é uma narrativa da injúria que depois de imaginada, torna-se um mecanismo de defesa contra aquela injúria, onde o outro (às vezes) imaginado, que não é sujeito direto ou objeto (pessoa), causará dor a mim, ao meu corpo, e a minha família. De modo geral o sujeito, cuja forma se constitui em torno da rejeição do objeto imaginado e odiado, deseja por uma subjetividade estática que, ao mesmo tempo, protege e apóia a sua formação. Ahmed usa um exemplo bastante apropriado, ao citar um trecho do site de um grupo nacionalista branco (The Aryan Nation) [2]. Neste trecho, podemos ver que o ódio é linguisticamente sinônimo da noção de proteção contra a dor e que, portanto, ele é uma forma de amor explicitamente declarada:
Não é o ódio que faz o homem branco médio olhar para um casal racial misto com uma carranca no rosto e asco no coração [sic]. Não é o ódio que faz a dona de casa branca jogar no chão o jornal judeu diário em repulsa e ira, depois de ler sobre outro molestador de crianças ou estuprador condenado, por tribunais corruptos, a apenas alguns anos de prisão ou à liberdade condicional… Não, não é o ódio. Mas sim, o amor. (Site da Aryan Nations)
O que permite que o ódio se funda tão facilmente ao amor é, nesta citação, uma completa ausência da presença do outro. Os significadores mudam do ódio para o amor tão rapidamente quanto mudam de judeu e negro para molestador de crianças e estuprador. No final das contas, o “bicho-papão”, por assim dizer, pode estar em qualquer lugar, em qualquer um, ameaçando a segurança de suas crianças… e de suas estruturas familiares. Em nosso momento político contemporâneo, estamos todas e todos, infelizmente, muito familiarizadas/os com essa elisão específica e esse esforço grosseiro de alinhar a violência com o Outro e a dor com qualquer coisa que exista fora de uma experiência particular. Isto nos mostra que o ódio, neste modelo, funciona discursivamente com muita transparência. Ao contrário da poderosa direcionalidade da raiva, o ódio flutua para vários significadores e se dissemina como um vírus. Quando Ahmed fala sobre o movimento do ódio entre sujeitos e objetos, ela escreve:
É a dificuldade de localização que faz o ódio funcionar da maneira que funciona; não é a impossibilidade do ódio enquanto tal, mas o modo de seu funcionamento, na medida em que ele surge em um mundo constituído por outros corpos. É a falha do ódio em se localizar em um determinado objeto ou figura que lhe permite gerar os efeitos que causa. [3]
Ahmed argumenta essencialmente, usando as ideias marxistas da circulação da economia e as ideias kleinianas da repressão, que o ódio na verdade constrói coletivos e noções de violência que são sempre funcionais contra qualquer força que pareça ameaçadora. Ela argumenta que, de muitas maneiras, essa forma imaginária de resistência é o que cria uma relação íntima entre quem odeia e quem é odiado. Existe um apego que é sustentado pelo ódio. O sujeito pode realmente precisar da relação destrutiva com o objeto: pode se apegar a essa necessidade. A intimidade que a necessidade proporciona e a relação entre o “nós” imaginado e um “eles” ameaçador, pelo menos como fantasia, define os sujeitos.
Uma certa negociação de limites entre o eu e os outros está atrelada a esta concepção do ódio. Assim, na projeção do objeto odiado pelo sujeito, há uma imagem do “outro”, daquele que, como diz Ahmed, “está contra mim; a proximidade do toque dos outros é sentida como uma negação.” [4]
Sendo assim, embora muitas vezes sintamos que o ódio vem de fora, ele é na verdade algo que vem de dentro de nós, uma conexão que ameaça. O sentimento vem de momentos em que o “eu” e o “eles” se tornam “nós”. Sentimos que eu/nós somos o mesmo… este momento “faz a pele arrepiar”. O que se segue, então, para Ahmed, é uma definição de ódio racial como aquele que torna os outros “diferentes”. Ela relaciona isto com a definição de um crime de ódio, a saber, “o outro é forçado a incorporar uma identidade particular por e para o autor do crime, e essa força envolve dano ou injúria”. [5]
Estou investida e interessada na concepção do ódio de Ahmed por causa dessa elisão sentida entre eu/nós que irrita (intriga); elisão que causa desconforto. Não sei dizer quantas vezes vi o rosto de um apoiador de Trump em vários meios de comunicação e senti uma onda de náusea; uma sensação de nojo absoluto por saber que de alguma forma essa pessoa tem identificadores semelhantes aos meus: somos “americanos”? Eu acho… somos humanos?… no fim das contas … como poderíamos ser os mesmos? Mas estou me adiantando um pouco, pois o nojo não é exatamente igual ao ódio.
Esta breve digressão me leva a outra razão pela qual estou interessada neste conceito. Eu quero trabalhar a distinção entre a raiva justa, direcionada, que surge do se sentir fisicamente inseguro ou traumaticamente prejudicado e, por outro lado, o ódio nebuloso, infeccioso e perigoso definido pela projeção. Acho que provocar essa discussão, de modo a nuançar tais termos, é uma forma de justiça precisamente porque estes dois afetos não são iguais e não merecem igual peso ou consideração.
Em última análise, o ponto de Ahmed é o seguinte: para ela, é justamente a linguagem que nos permite fazer uma narrativa da injúria e da violência, mas também uma defesa para a narrativa, por conseguinte, imaginada. Nesse sentido, quero investigar: como uma linguagem de relacionalidade não prejudicial se parece? Uma linguagem entre sujeitos, que relamente nos permitiria fazer a experiência de uns com os outros ou talvez, até mesmo, suportar a elisão do eu/nós, por mais breve e desconfortável que ela seja.
- Gênero Intensivo
Seguindo a ideia de Deleuze e Guattari de uma filosofia da diferença, a qual é fundamental para a concepção de uma subjetividade nômade, Rosi Braidotti usa a escrita de Virginia Woolf para estabelecer uma metodologia para pensar sobre as manifestações da subjetividade na linguagem e especificamente na escrita. Com um sujeito em constante fluxo e sempre intersubjetivo, ela usa a diferença para afirmar a subjetividade. Mais precisamente, ela se vale do “processo de afirmação da estrutura positiva da diferença”, descrito da seguinte forma:
Processo de afirmação da estrutura inalteravelmente positiva da diferença, desvinculado do sistema binário que tradicionalmente o opõe à Igualdade. A diferença como positividade acarreta um processo múltiplo de transformação, um jogo de complexidade que expressa o princípio do não-Um. Conseqüentemente, o sujeito pensante não é a expressão de uma interioridade profunda; nem é a encenação de modelos transcendentais de consciência reflexiva. Ele é um agenciamento coletivo, um ponto de transmissão para uma teia de relações complexas que desloca a centralidade das noções de identidade indexadas pelo ego. [6]
Assim, para Braidotti, a subjetividade é formada a partir de ideias (noções percebidas) de diferença. Este aspecto da noção de subjetividade de Braidotti é polêmico para algumas feministas e teóricas queer no que diz respeito à confiabilidade do conceito de diferença. No entanto, não se trata de uma diferença que exclui uma experiência queer vivida, mas sim de uma diferença que é construída a partir de uma ideia pós-estrutural que privilegia os espaços entre as noções mais fixas do eu. Sacudindo a bagagem do reconhecimento, esse espaço parece ser diferente do espaço intersubjetivo. Na verdade, é mais útil pensar sobre esse “espaço entre” através da concepção de Luce Irigaray de “entre nós” (entre-nous); isto é, pensar esse espaço-entre em direção a uma noção de relação que não é baseada na diferença definida pela exclusão atrelada a uma força universalizante que, em última instância, é reintegrada, mas sim em direção a uma noção de relação como uma força impulsionada pelo encontro. Irigaray escreve:
O desejo é preservado porque nenhum dos dois pode se apropriar do outro. O desejo não equivale a um entrelaçamento devido a uma proximidade inconsciente, um compartilhamento da língua nativa da paisagem, uma familiaridade em relação à casa da família e à vizihança. Antes, o desejo significa uma atração mantida viva graças à relação atenta ao outro como diferente de mim, sempre permanecendo assim para além de qualquer apropriação pelo mim mesmo – o que permite uma proximidade enquanto se respeita o dois e também enquanto se preserva o entre dois. [7]
Então, este espaço entre-outros cultiva um desejo pelo encontro sem um desejo por consumir para conhecer plenamente. E essa metáfora do espaço-entre se torna concreta para Braidotti na manifestação dos espaços entre diferenças na linguagem. A transposição do metafísico “entre-nós” para a linguagem começa com o enunciado ou com a criação de uma narrativa que capta os paradoxos da relacionalidade. Visto que, para Braidotti, a própria criação é um processo nômade, aquilo que inerentemente inspira o ímpeto no sujeito de se deslocar dos discursos normativos e, assim, de pensar fora destes discursos; a criação de tal narrativa e das complexidades desta relacionalidade se torna um modo de encenar o desejo cultivado “por entre dois”. O sujeito pode imaginar uma mudança sem transcendência, conceber uma empatia que não ofusque seu próprio senso de identidade.
Este é um argumento que se vincula ao poder ético de tais textos relacionais e à sua capacidade de ativar a mudança do interior para o exterior. Braidotti deseja ilustrar tal argumento lendo a ficção de Virginia Woolf em paralelo com suas cartas para sua amante e amiga Vita Sackville-West. Ela vê o encontro explícita e implicitamente no texto como uma experiência de intersubjetividade que leva ao “devir” ou a “blocos de devir”.
Para Braidotti, o devir é um processo de “esvaziamento do eu” [8] e de abertura a possibilidades. O processo criativo se torna, então, um espaço e um evento que aciona a consciência flutuante. Essa consciência flutuante é ativada nos momentos em que o controle racional libera seu domínio e no momento em que há um reconhecimento do influxo de sensações que, tanto física quanto psiquicamente, chegam ao eu. Perceber isto confirma a singularidade de um ente, mas também permite que este ente perceba a multiplicidade de situações que interagem com ele, enquanto sujeito, fazendo com que sua singularidade exista. Tudo isto contribui para um processo de transformação, porque a oportunidade de experimentar a consciência flutuante desencadeia uma percepção elevada que nos dá espaço para desafiar os discursos dominantes dentro de nós; esse espaço possibilita o empoderamento conceitual, na medida em que encontrar tal espaço virtual da imaginação desperta a memória. Há, então, uma lacuna percebida entre essa memória, um senso de identidade e uma consciência total do “devir”, que se faz necessário justamente para que esta lacuna possa ser atravessada. Braidotti descreve este momento da seguinte forma: “Quando você se lembra de devir o que você é – um sujeito em formação – você na verdade se reinventa com base naquilo que você espera que poder devir a partir de uma pequena ajuda de seus amigos”. [9]
Com a criatividade nômade e a subjetividade múltipla em mente, Braidotti localiza as qualidades textuais desse devir. Alguém poderia pensar que ela está atualizando a escrita feminina de Cixous, mas em vez disso, ela lê o corpo da obra de Woolf em relação a Vita através de uma lente pós-humana, o que significa que ela busca pensar os textos como corpos inteiros e considerar como esse devir animal/mulher/mundo também é um modo de se tornar minoritário (Deleuze e Guattari). Ela escreve que “o estilo do fluxo de consciência de Woolf expressa com incrível precisão a seriedade, bem como a imanência radical e a contingência estrutural dos padrões de repetição pelos quais os processos qualitativos de transformação podem ser atualizados. Assim, Woolf inventa um gênero próprio – o gênero intensivo do devir.” [10]
O gênero intensivo é o trabalho que torna aparente esse processo de três etapas de imaginação-lembrança-devir, ao mesmo em tempo que o inspira em uma relação dialética com o leitor. Este gênero não é estilístico ou retórico, diferentemente ele corresponde ao que Braidotti chama de “ferramenta de navegação” habilitada pela imaginação que permite ao sujeito criar conceitos – e isto conversa com a nossa memória – ou seja, procuramos espaços na nossa memória ou momentos em que sentimos tal distância. É a partir destes momentos que pensamos no que queremos ser e é através destes processos que podemos criar espaços virtuais. Tais espaços permitem que o sujeito se diferencie tanto quanto possível, ao mesmo tempo em que permanecem uma espécie de conjunto de si mesmos. Todo esse processo é coletivo – essa consciência flutuante inspirada pela imaginação, funcionando com a memória e resultando na criação de um espaço virtual ou em um si especulativo, envolve a posição integral dos outros como Outro e uma relação dinâmica com esses Outros. (Por exemplo, Braidotti oferece a imagem útil do lançamento de uma nota musical a partir da qual vários tipos de instrumentos são afinados).
O dispositivo que agrega (“que torna a multiplicidade concreta”) é a experiência e a empatia ou compaixão por tal experiência. Isso torna aparente a necessidade de relacionalidade ou do desejo. Não se trata do tipo de desejo que alimenta o reconhecimento hegeliano, porque o motivo para tal desejo postula uma falta. Diferentemente, trata-se da aceitação da plenitude do desejo e dos desejos de alguém. Para Braidotti, o que é diferente é a função. Ela afirma que, “O desejo esboça as condições para o futuro ao focar no presente por meio do acidente inevitável de um encontro, um rubor (Woolf), uma aceleração repentina que marca um ponto de não-retorno” [11]. A sexualidade desempenha o papel mais importante neste processo do devir como a interação que desterritorializa e desfaz o si e o mais íntimo e óbvio tipo de encontro. O objetivo desse tipo de escrita é, então, entrar em um espaço onde a mesmice e a diferença existam, mas sem serem modeladas na dialética da masculinidade e da feminilidade. Portanto, poderíamos chamar esse espaço de espaço queer.
O que podemos deduzir de tal leitura é que o gênero intensivo é um modo de escrever e receber a escrita que permite maior receptividade, lembrança e ativação da memória e imaginação de possibilidades virtuais do si que poderiam permitir sua reinvenção. A linguagem da liberdade de expressão indireta é central para a visão nômade de Braidotti do sujeito como um “conjunto heterogêneo” [12], que expressa excesso sem autodestruição.
Pode-se argumentar que toda literatura aspira a esse tipo de interpretação ou que essa é a própria definição ou objetivo da Literatura. Mas, o método de Braidotti tenta buscar momentos textuais e linguísticos que em si mesmos, ou como si mesmos, tornam-se uma articulação de um espaço de desejo – um espaço relacional. Portanto, os processos de distanciamento (distância entre o sujeito da escrita e o ato de contar histórias), a experiência da consciência flutuante, o engajamento com o desejo, o encontro imaginado e a imaginação virtual do si são o plano de imanência [13] em que a subjetividade se forma, se desloca; plano que se torna, assim, a amálgama de conjuntos instáveis e não lineares que moldam o eu. O corpo do texto exibe mimeticamente este si. Essa ideia de gênero intensivo, um gênero que emprega uma linguagem que captura experiências múltiplas, exibe um cruzamento de fronteiras e amplifica o afeto para fazer da linguagem uma força constitutiva. Tal concepção de imanência rejeita o uso do ódio como falta da presença na medida em que torna o Outro presente.
- O corpo político
“A representatividade radical e inclusiva não é precisamente o objetivo: incluir, falar, bem como trazer todas as posições marginais e excluídas para dentro de um determinado discurso é afirmar que um discurso singular não encontra seus limites em lugar algum, que ele pode e irá domesticar os sinais da diferença.” [14]
Judith Butler, Corpos que Importam
O cenário político recente dos Estados Unidos parece ter trazido à tona discussões sobre autoidentificação e compreensão com demonstrações poderosas e visíveis do sofrimento causado pelas supostas decisões de um corpo político. Como acontece com qualquer corpo doente, deve-se encontrar a localização do tumor e retirá-lo. No processo dessa automutilação, o corpo político, as práticas de falsa massificação e as fantasias estabelecidas de identidades coletivas – aquelas institucionalizadas e socialmente arraigadas – tornam-se a ameaça. A política da identidade se tornou o único tipo de política que importa na constante batalha contra aqueles que devemos culpar, enquanto a doença sistêmica da massificação persiste sob o disfarce de formas concorrentes de multiculturalismo e nacionalismo.
Em 2016, em meio à crescente energia da campanha presidencial de Trump, a decisão de Gavin Grimm de usar o banheiro masculino em sua escola, embora na época ele tenha sido identificado por outros como transgênero, gerou uma discussão nacional dominante sobre como as identificações funcionam. Em uma pequena peça didática montada pela CNN, Gavin se defende e se explica dizendo: “Eu não sou uma aberração, minha existência não é uma perversão.” [15]
O capitalismo avançado, funcionando como um aspirante ao sistema democrático do Estado-nação, é biopolítico no sentido de que deseja controlar a reprodução e a sexualidade. A articulação da diferença de compreensão e a proeminência do desejo, procuram derrubar noções fixas de identidade, enfatizando o momento e espaço da relacionalidade queer e a importância da experiência única de relacionalidade de qualquer indivíduo. A avaliação de Grimm acerca de sua própria existência (subjetividade) como uma perversão, fala sobre as maneiras pelas quais os modos de articulação de si se tornam comprimidos às estruturas negativas de diferença que absolutamente descontam a agência do indivíduo no processo de formação do sujeito e no processo de sujeição a um sistema político.
Desde as suas origens, a autoficção tem sido um (não) gênero marcado pela performance da confissão erótica. Em seu último artigo, Girls Like Us, MckenzieWark a define como um termo que “se tornou um gênero legítimo quando um certo cara branco cis-hétero publicou uma grande quantidade delas para, querendo ou não, rejeitar principalmente livros de mulheres, que parecem se aproximar mais do que os críticos imaginam como sendo a vida do escritor. Isso tira o arbítrio da escritora como sujeito marcado, como se ela estivesse documentando em vão sua dor e não fazendo literatura – não julgando os outros. Trata-se, pois, de um termo que precisa de algum resgate”. Este é um gênero que permite que o si esteja presente, mas também que a autora reconheça sua própria posição de sujeito face à sua narrativa. Ele promove o tipo de consciência flutuante que Bradotti atribui ao gênero intensivo.
Incluir uma exploração completa (e talvez exploração) de um si sexualizado também parece ser central em muitas formas autoficcionais. Os exemplos incluem The Sexual Life of Catherine M. de Catherine Millet; Passion Simple de Annie Ernaux; Zami: A New Spelling of My Name de Audre Lorde; To The Friend Who Did Not Save My Life de Hervé Guibert; I Love Dick, de Chris Kraus; e How Should a Person Be? de Shelia Heti. No centro dessas representações está o problema da erotização e das restrições de sua subsunção à cultura neoliberal do capitalismo tardio. A linguagem da relacionalidade e os momentos de autocompreensão renegociam os limites biopolíticos do sujeito corporificado; ela prevê um imaginário social que perturba categorias normativas de experiências corporais individualizadas.
Ficção autobiográfica e testemunho podem ser vistos como um paradigma. Articular livremente uma experiência reprodutiva e sexual é algo que não pode ser “massificado” ou afetado em grande escala. Isso enseja camadas de consciência no que diz respeito a modos de sujeição linguístico, cultural e político. Percebemos que a opressão relativa à sujeição indefinidamente acarreta a diferença de uma forma alternativa.
Embora pareça um projeto muito alienante, individualizado, que privilegia apenas um discurso pessoal, o “devir” sempre requer o outro, ou seja, ele nunca pode ser um processo solitário. Portanto, a experiência de consciência e a articulação desta experiência é, em certo sentido, individualizada porque origina uma certa percepção e uma certa distância, contudo se trata de uma experiência de si que só pode surgir da relacionalidade – isto é, na coletividade. Trata-se, então, de uma experiência singular e de uma criação coletiva.
É isso que faz da experiência do biopolítico, em termos de formação do sujeito, uma experiência pessoal, mas a experiência de uma subjetividade individualizada é sempre informada pelo outro, pela relacionalidade. Tal desfazer é um desempacotamento coletivo de noções impostas de estruturas biopolíticas que são transformadas em fantasias opressivas de subjetividades fixas.
- Conclusão
Para concluir, gostaria de voltar à definição do ódio de Ahmed e ao modo pelo qual ele funciona enquanto um afeto para, assim, argumentar que o tipo de ódio contagiante que assola os Estados Unidos e, francamente, muitas outras partes do mundo é um agente de massificação biopolítica. Além disso, este tipo de ódio corresponde a uma maneira de ensejar o desalinhamento imaginário com o outro nebuloso (o eles), forma que é facilmente anexável às categorizações capitalistas que são comercializáveis e que são livremente perpetradas nas redes sociais, no mercado (obviamente) e entre sujeitos.
Então, como tudo isso se relaciona com o policial do início do meu texto e com seu olhar reprimido de desprezo?
Vou tentar encerrar meu artigo, respondendo a esta questão com dois exemplos:
- Down Girl: o incel e o papel da misoginia
A teoria de Braidotti é expressa em sua própria forma como pós-humanista porque visa descentrar não apenas o sujeito masculino como o criador de todo o discurso (e de tudo mais), mas também porque consiste em uma abordagem teórica que aceita uma noção mutante ou mutável do si mesmo; uma noção que não pode ser definida pelas estruturas estritas de gênero e ou por papéis sociais estáticos.
Kate Manne, em sua investigação filosófica rigorosa, Down Girl: The Logic of Misogyny, também assume o humanismo em seu pensamento. Na linha de Ahmed, Manne acredita que, ao contrário do discurso popular acerca da objetificação e da sua relação com o ódio, o sujeito odiado com o qual alguém é inextricavelmente íntimo deve ser de alguma forma (talvez apenas no imaginário) humano para o agente do ódio. Dito de outro modo, usando os termos de Ahmed, a única maneira pela qual a desconfortável elisão EU/NÓS pode ocorrer é no despertar da compreensão de que o Outro é, de fato, humano e ele RESISTE à objetificação total, confirmando assim a ameaça ou a narrativa da injúria por parte dos agentes que odeiam.
Costumamos dizer que tornar o Outro abjeto ou objeto nos permite, como humanos, praticar a violência contra ele de uma forma ou de outra. Manne afirma que é exatamente o oposto.
Para rapidamente resumir sua rejeição da falsa lógica da ideia humanística e altruísta de que, se todos nós nos percebermos como humanos, teremos empatia, compaixão e não agiremos violentamente para com os outros, Manne postula que nossa capacidade de reconhecer a humanidade nos outros pode realmente alimentar o ódio em razão de uma estrutura social vertical que crava as experiências em uma forma hierárquica baseada em raça, gênero e classe, mas também na intersecção dos três.
Se o Outro pode existir como eu, então ele pode valorizar ou desvalorizar minha opinião, meu sistema de crenças. Se os outros forem totalmente humanos como eu, então eles podem me trair, como eu posso trai-los; eles podem me decepcionar; surpreender-me; trapacear… eles podem fazer todas as coisas que também sou capaz de fazer.
Manne escreve que, “Eles podem, portanto, ser uma ameaça para tudo o que você preza. E você, por sua vez, pode ser uma ameaça para tudo aquilo que eles apreciam – como você pode ter percebido. Isso nos dá razões suficientes para nos preocuparmos com a capacidade que os outros têm para a crueldade, o desprezo, a malícia e assim por diante.” [16]
Manne acrescenta à teoria do ódio de Ahmed uma observação importante sobre a situação social e hierárquica de um agente do ódio, observação que muitas vezes ignoramos através de um discurso humanista sobre a empatia. Ela escreve que “Os maus-tratos de pessoas historicamente subordinadas, que são percebidas como uma ameaça ao status quo, muitas vezes não precisam da explicação de uma história psicológica especial, como a da desumanização por exemplo. Ao invés disso, eles podem ser explicados em termos de estruturas sociais atuais e históricas, em termos de relações hierárquicas, de normas e de expectativas, em consonância ao fato de que são amplamente internalizadas e difíceis de erradicar.” [17]
Manne vai além explicando que os agentes em posições sociais dominantes, ou em posições de poder, estão iludidos por suas próprias posições sociais em relação a outros humanos… muitas vezes inconscientes no que diz respeito a seus sentimentos profundamente enraizados de direito e expectativas de subordinação que vêm com essa ilusão. (Isso é remediado pelo processo de desaprendizagem… e pela linguagem da desaprendizagem que requer primeiro uma aceitação de privilégios e expectativas injustas).
A teoria de Manne se aplica ao ódio que está enraizado em ações misóginas e racistas, mas como seu texto se concentra na misoginia, trata-se, então, do homem cisgênero e heterossexual. Para mim, isso faz muito sentido porque, de certa forma, isto é o que acontece quando um homem está sendo um misógino, um abusador, um matador de mulheres (e quero enfatizar aqui, um matador NÃO apenas de mulheres cis, mas também de mulheres trans, de pessoas queer, de indivíduos não-binários, de QUALQUER UMA e de QUALQUER UM que não se enquadre nas categorias binárias massificadas. Na verdade, as mulheres cis são as únicas que têm pelo menos a chance de jogar o jogo ao lado destes homens.)
O que acontece quando uma mulher não se comporta de acordo com as normas? Quando ela, por qualquer motivo, age fora de seu papel socialmente esperado (objetivado)? Ela ou elas se tornam humanas. Ela ou elas têm a capacidade de rivalizar, de se tornarem inimigas, de discordarem, de ameaçarem, de nos envergonharem ou, deus me livre, de pensarem diferentemente.
Um exemplo apropriado e doloroso que Manne usa é o caso de Rodger Eliot, um incel, que em maio de 2014 matou seis pessoas e feriu 14 em Isla Vista, Califórnia, no campus da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, antes de se suicidar alegando que se tratava de um ato de retribuição para as “espécies femininas que eram incapazes de ver o meu valor.” Caso não saibam, os grupos de incel, em forte ascensão nos Estados Unidos, são em sua maioria comunidades online cheias de homens heterossexuais, cisgêneros, jovens e velhos que decidiram se tornar celibatários com base em sua misoginia – que eles não concebem enquanto tal.
Manne lê o manifesto de Rodger, “My Twisted World”, como outra forma de mostrar que a intimidade ou a esperada intimidade é necessária para o ódio. Ela cita um trecho de seu manifesto que diz:
Humanidade, todo o meu sofrimento neste mundo está nas mãos da humanidade, principalmente das mulheres. Isso me fez perceber o quão brutal e distorcida a humanidade é como espécie. Tudo o que eu sempre quis foi me adaptar e viver uma vida feliz no meio da humanidade, mas fui expulso e rejeitado, forçado a suportar uma existência de solidão e insignificância, tudo porque as fêmeas da espécie humana eram incapazes de ver o meu valor. [18]
Portanto, ele não considerava essas mulheres objetos ou coisas irracionais ou mesmo subumanas. Elas eram humanas e eram capazes de machucá-lo. Elas não lhe deram o que deveriam lhe dar: Sexo, Amor, Afeição. Desde seu lugar no mundo, como um homem cisgênero branco, desde sua perspectiva social privilegiada, ele concebia que elas lhe deviam tudo isso.
No manifesto de Rodger, todas as mulheres sofrerão sua ira, não apenas as “putas loiras” que o rejeitaram. Este é apenas um exemplo muito óbvio de como esse efeito é nebuloso e viral e, além disso, das razões pelas quais é tão satisfatório. O ódio obviamente funciona aqui no lugar de um sentimento de aceitação, amor ou cuidado.
É tentador pensar em Rodger como uma anomalia; como tendo problemas psicológicos que o levaram a se comportar desta forma. Quando jovem, como alguém influenciado pela pornografia ou como alguém apenas “desligado”. No entanto, Manne rejeita essa lógica em seu estudo. Rodger está, de fato, levando ao extremo as crenças que são valorizadas e que estão embutidas em um sistema patriarcal, crenças que perpassam vários níveis frequentemente de maneiras menos extremas.
- Meu segundo exemplo vincula isto ao nosso policial. Os crescentes protestos de Black Lives Matter nos Estados Unidos neste verão, desencadeados pelos assassinatos de Breonna Taylor e George Floyd, se uniram e fortaleceram um movimento para abolir a polícia. Um dos argumentos mais difundidos pela direita contra essa abolição foi um apelo, em pânico, que afirmava o fato de que a polícia protege as mulheres, embora, de acordo com o National Center for Women and Policing, cerca de 40% dos próprios policiais sejam abusadores ou tenham sido acusados de violência doméstica. Esta é uma entre milhares de estatísticas sobre a natureza violenta da força policial e não é uma surpresa para todas e todos que suportaram a violência do Estado durante séculos, nem para todas e todos que estudaram e seguiram os rastros genealógicos de tal violência. No entanto, parece que estamos diante de um público que não consegue entender ou imaginar um mundo sem uma força policial protetora imaginária, porque eles não podem imaginar um mundo sem o apego a seus próprios medos em relação ao que é diferente, sem o ódio por aquilo que é outro ou por experiências que não as suas. Em certo sentido, torna-se difícil, neste contexto, imaginar um mundo sem inimigos em todos os lugares, um mundo no qual o senso de identidade se esvaziaria. Existe um medo real operando aqui, um medo da perda.
E se a nossa existência NÃO for, de fato, constantemente ameaçada pelo Outro, e se o Outro simplesmente não se encaixar na fantasia esperada e produzida pelas estruturas da classe dominante? Poderíamos permitir um Outro que desvalorize nossas crenças e que, mesmo assim, valorize nossa humanidade? Esta é, de fato, uma possibilidade?
Os parâmetros que definem nossas atuais estruturas governamentais e sociais dependem de tal maneira da oposição que o sujeito, que não anuncia as formas por meio das quais o Outro lhe ameaça, pode não se tornar visível. Portanto, as ameaças que obviamente são constantes para todas e todos nós, nada mais são do que forças que exigem a oposição em nome da sujeição; em nome do total apagamento da multiplicidade; forças que continuam a ameaçar e a matar corpos negros e marrons em todo o mundo (novamente, não acho que o ódio seja o mesmo que a raiva, a qual pode ser útil, justa, real e vivida).
Manter essa desigualdade sempre foi o objetivo da polícia e é um clássico na cartilha do poder e do medo. Alex Vitae, em sua história bem pesquisada da polícia nos Estados Unidos, escreve: “A realidade é que a polícia existe principalmente como um sistema para gerenciar e, até mesmo, produzir desigualdades, suprimindo movimentos sociais e controlando rigidamente o comportamento de pessoas pobres e não brancas; ou seja, o comportamento daqueles que perdem no contexto dos arranjos econômicos e políticos. (David) Bayley argumenta que o policiamento surgiu à medida que novas formações políticas e econômicas se desenvolveram, produzindo convulsões sociais que não podiam mais ser administradas pelos processos privados, comunais e informais existentes.” [19]
Nesse esquema do ódio, a polícia existe para manter as expectativas que nos permitem odiar uns aos outros. Eles existem para permitir que os brancos se sintam superiores e se sintam injustiçados quando os outros são “insubordinados”, permitindo assim que os homens mantenham as mulheres, as pessoas não binárias, as pessoas queer em papéis que eles e elas não habitam e não querem habitar.
Quero, então, terminar este artigo dando um exemplo final de como um sistema que apóia a oposição se manifesta linguisticamente. No texto intitulado Naming the Harm, o qual reflete sobre a relação entre o testemunho de mulheres, a polícia e as forças misóginas violentas (alerta de spoiler, os dois últimos elementos nada mais são do que o mesmo elemento), uma escritora e querida amiga minha, Sarah Yurch, relata sua experiência com um policial que acabara de testemunhar o abuso que seu parceiro publicamente lhe infligira. E é claro que “a justiça não foi feita”.
Ela usa seu doloroso testemunho deste incidente para falar sobre o que se segue, uma experiência pela qual a maioria das pessoas nos Estados Unidos passa, ao tentar obter uma ordem de proteção contra o seu agressor – ordem que em teoria deveria conceder o direito legal de processor o agressor caso ele se aproxime da vítima. Tais documentos são classicamente impossíveis de serem obtidos e preenchidos. A polícia é extremamente inadequada para falar sobre e com, para ajudar ou para avaliar a situação de uma sobrevivente de abuso e a sobrevivente, por sua vez, deve descrever com precisão os momentos de violência cometidos contra seu próprio corpo, fazendo uso de uma linguagem legal que a priva de suas próprias descrições e experiências, alienando-a de sua dor.
Sarah descreve seu trabalho como aquele que mostra as maneiras pelas quais a linguagem jurídica, a linguagem de nossas instituições, aumenta a violência e destrói a experiência. Ela escreve:
Posso atestar, por experiência própria, que leituras repetidas apenas tornam esta lista mais confusa. Por que, por exemplo, incluir “assédio” e “assédio agravado”? Qual é a diferença entre “estrangulamento” e “obstrução criminosa da respiração”? Não somos todos (pelo menos teoricamente) impedidos de cometer “qualquer crime”? Especificar que crimes são proibidos é, na melhor das hipóteses, redundante, e sua enumeração sugere que não havia problema em cometê-los antes, mas a partir de agora ele não deve me atacar, não deve me estrangular, não deve me ameaçar. Podemos razoavelmente ler isso como o modo pelo qual o sistema de justiça fala sobre si mesmo: ele deixa claro que nós – sobreviventes, vítimas, mulheres espancadas, peticionárias – já devemos ter em mãos um julgamento a nosso favor, antes mesmo que as leis possam realmente nos proteger.
Minha ordem de proteção também determina que essas coisas não devem ser feitas contra e em mim, como se eu fosse o fator que transforam tais ações em uma violação da lei, e o homem que costumava me espancar é livre para continuar sendo criminalmente violento, desde que não seja contra mim. A lógica que opera aqui concebe o agressor como uma ameaça específica e não geral, isto é, o homem que costumava me espancar é apenas um perigo para o entorno de sua vítima (eu).
Como a própria instituição que representa, esta é uma linguagem de oposição. Não permite a emergência da raiva direcionada e correta, mas apenas do ódio nebuloso. Contornar os limites de uma linguagem de oposição que incita o ódio, mesmo quando, em tese, ela pretende nos proteger, é um trabalho do gênero intensivo, do testemunho que assume uma outra forma.
Tanto o ódio do policial que fora percebido pelos manifestantes, quanto o do rosto do meu agressor, são os mesmos nestes momentos de encontro; estes dois homens devem me perceber como humana, como aquela que rejeita suas verdades, suas crenças, e eles não suportam ouvir ou ver a linguagem do entre.
Compelir uma sociedade a suportar a elisão do Eu/Nós exige que reconheçamos, que VEJAMOS o desprezo como algo que é negativamente imaginativo, protetivo e íntimo. Como algo que não vem de dentro, mas do estar e do sentir sem. Testemunhos e narrativas que empregam uma linguagem de relacionalidade podem enfatizar o momento da elisão; o desconforto ou os confortos do enredamento; em última análise, trata-se, pois, de privilegiar o desejo pela experiência intersubjetiva e de rejeitar imaginações estáticas de um si coeso, maturado pela massificação e categorização capitalistas, facilmente delimitadas por poderes que são colocados em prática para que as oposições se mantenham.
[1] Sara Ahmed, The Cultural Politics of Emotion. New York: Routledge, 2015, pp.43–44.
[2] Vale a pena notar que, embora este site não exista mais, ele acabou se transformando em uma versão muito mais violenta da mesma retórica.
[3] Ahmed, The Cultural Politics of Emotion, p.48.
[4] Ahmed, p. 51.
[5] Ahmed, p. 55.
[6] Rosi Braidotti, “Intensive Genre and the Demise of Gender.” In: Nomadic theory: the Portable Rosi Braidotti. New York: Columbia University Press, 2011, p. 151.
[7] Luce Irigaray, In the Beginning, She Was. New York, NY: Bloomsburg Academic, 2013, pp.17-18.
[8] Braidotti, “Intensive Genre,” p. 157.
[9] Ibid.,p. 152.
[10] Ibid.,p. 151.
[11] Ibid.,p. 168.
[12] Ibid., p. 155.
[13] Ibid., p. 154.
[14] Butler, Bodies that Matter, 1995.
[15] Ariane De Vogue and Alex Lee, “Meet Gavin Grimm, the transgender student at the center of bathroom debate.” (CNN. September 08, 2016), http://www.cnn.com/2016/09/08/politics/transgender-bathroom-issues-gavin-grimm/index.html.
[16] Kate Manne, Down Girl: The Logic of Misogyny. London: Oxford University Press, 2019, p. 147.
[17] Manne, p. 157.
[18] Manne, p. 174.
[19] Alex S. Vitale, The End of Policing. London ; New York: Verso, 2017.
*Salvador Dalí, Le visage de la guerre, 1940