Revoltas, Larissa Schip

Conjunto Habitacional

por Larissa Ship
Artista Visual
Brasil

Desde as últimas eleições presidenciais no Brasil em 2018, ganhou visibilidade o fato de que se declarar politicamente afeta questões e relações pessoais; é partindo dessas questões que na minha produção artística tenho me provocado a pensar uma inversão do “O pessoal é político” para “O político é pessoal”.

Os países colonizados, como é o caso do Brasil, parecem ter uma tendência muito forte a serem formados por uma população despolitizada que reduz sua performance política a períodos eleitorais. Por consequência, em geral, a ideia de que “política é só coisa de político” afasta as pessoas do fato de que elas também fazem parte da organização coletiva do território em que vivem. Neste sentido, compreender que a política é pessoal acaba sendo a única saída para que as pessoas se tornem protagonistas de suas próprias histórias. Jota Mombaça escreve que é preciso reimaginar o mundo para, assim, construí-lo sem as normas colonizadoras:

Liberar o poder das ficções do domínio totalizante das ficções de poder é parte de um processo denso de rearticulação perante as violências sistêmicas, que requer um trabalho continuado de reimaginação do mundo e das formas de conhece-lo, e implica também tornar-se capaz de conceber resistências e linhas de fuga que sigam deformando as formas do poder através do tempo.[1]

Para pensar o “eu-político”, insiro aqui uma autonarrativa: eu, mulher, feminista, lésbica, branca, artista, filha de professores que, contrariando a norma, ascenderam para a classe média. Parto do entendimento de que uma vez que se compreende o quanto tudo é político a nossa vivência é outra.

Entre 2012 e 2015, produzi roupas para ir às manifestações feministas, porém esta produção extrapolou tal lugar, porque passei a usar estas peças em meu cotidiano – para sair, ir à faculdade ou ao trabalho – e, nesse espaço externo, minhas vestimentas sempre tiveram uma força política diferente daquela que tinham nas manifestações. As pessoas nas ruas, no lugar comum, eram mais afetadas. Geralmente de forma negativa ou incômoda, as reações reforçavam o ato político de se fazer presente em lugares que, mesmo sendo públicos, não estão dispostos a conviver com corpos que se declaram transgressores.

É preciso, nesse processo de reapropriação subalterna das técnicas de violência, saber reconhecer os modos como cada corpo elabora sua própria capacidade de autodefesa. Parte desse trabalho consiste, portanto, numa mudança radical de percepção.[2]

Em um contexto periférico, produzir as próprias roupas é comum – essa naturalidade em customizar as roupas, em afirmar a diferença do que é feito para o protesto pelas próprias mãos das que protestam. A permanência política que existe nisto resulta em uma estética não higienizada que é considerada desagradável; esta estética se distancia completamente dos produtos, facilmente encontrados em lojas de departamento, que sinalizam frases de militância ideológica.

No projeto que venho trabalhando resgato parte dos panos utilizados na construção de tais vestimentas e os recosturo em outras roupas. Proponho-me um vestir-se de revolta com afeto dentro do meu espaço privado – que hoje se localiza em uma área mais privilegiada da cidade de Curitiba –, em minha casa, em um espaço que teoricamente poderia me libertar em razão de minha militância, pois: O política é pessoal.

Conjunto habitacional é uma série de imagens, em que uso uma jaqueta que vira uma máscara na qual o símbolo transfeminista está estampado. Recentemente me mudei para um prédio que tem as características convencionais de um conjunto habitacional, com apartamentos próximos que intensificam a noção de que o espaço privado é um privilégio para poucos.  Paul B. Preciado, que pensa os conjuntos habitacionais a partir da ideia de Vigiar e Punir de Foucault, escreve em seu recente texto Aprendendo com o vírus:

A nova fronteira é a máscara. O ar que você respira deve ser apenas seu. A nova fronteira é a sua epiderme. O novo Lampedusa é a sua pele. As políticas da fronteira e as rigorosas medidas de confinamento e imobilização que nós, como comunidade, aplicamos nos últimos anos a migrantes e refugiados — até deixá-los fora de qualquer comunidade — agora são reproduzidos nos corpos individuais. Durante anos, nós os tivemos no limbo dos centros de detenção. Agora somos nós que moramos no limbo do centro de retenção de nossas próprias casas.[3]

Confinada em um apartamento durante a epidemia do COVID-19, penso nas máscaras que sempre foram usadas na militância, tanto como ornamento quanto como proteção contra a polícia: em que sentido, pois, estas máscaras diferem das usadas hoje contra o vírus que se espalha pelo planeta? Paul B. Preciado, continua:

O que estará no centro do debate durante e após esta crise é que vidas estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas. É no contexto dessa mutação, da transformação das formas de entender a comunidade (uma comunidade que hoje é o planeta inteiro) e da imunidade onde o vírus opera e se torna uma estratégia política.[4]

[1] MONBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência! In: MUSEU DE ARTE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRIAND. História da sexualidade: antologia – São Paulo, 2017, p.303.

[2] Ibidem, p.308.

[3] PRECIADO, Paul B. Aprendendo com o vírus. Disponível em: http://agbcampinas.com.br/site/2020/paul-b-preciado-aprendendo-com-o-virus/.

[4] Ibidem.

*Photo: Larissa Schip
Conjunto Habitacional, 2020

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