Comunicações, Florence Fitzgerald-Allsopp

OS OUTROS SIGNIFICATIVOS: O CUIDADO QUE PENSA-COM E AS PERFORMANCES INTERESPÉCIES*

Florence Fitzgerald-Allsopp
Tradução de Hugo Vedovato

Prólogo

Este artigo atua como um trabalho de investigação feminista em diálogo com uma multiplicidade de vozes feministas multiespécies. Fundamentado em epistemologias feministas, ele coloca em primeiro plano uma política do feminismo interseccional radicalmente inclusivo com e além das mulheres em direção a outros grupos que sofrem opressões semelhantes sob sistemas entrelaçados de dominação, incluindo animais não-humanos. Como este artigo discute temas de “alteridade” e animalização, é importante que eu reconheça minha própria posição como uma mulher cis branca ocidental que inerentemente se beneficia de sistemas racistas de supremacia branca; portanto, reconheço que estou consequentemente discutindo os temas deste artigo a partir de uma posição de privilégio branco. Estou ciente de que minha experiência de vida dessas questões como uma mulher branca difere drasticamente de outros grupos raciais, étnicos e minoritários, e tento abordar isso incorporando diversas vozes e experiências em minha pesquisa: vozes de diferentes teóricos, artistas e animais não-humanos com os quais penso.

Parte 1: O Animal

“O animal, que palavra!” exclama Derrida (1997, 2008, 23), e de fato é uma palavra bestialmente grande. Uma que nos confronta em toda a sua vastidão, complexidade, incognoscibilidade, familiaridade, dor, culpa, desejo. Uma palavra tão emaranhada que se torna amorfa, indecifrável, deixando-nos perplexos. O gato que comeu nossa língua. O animal. Um conceito, uma construção humana, uma ideologia, que ao mesmo tempo homogeneiza as milhões de diversas espécies de animais não-humanos que habitam este planeta. Aquele que serve como uma negação abrangente do que é humano. Aquele que é usado como justificativa para opressão, exploração e violência. Isso apaga, reduz e rebaixa. “Animais!”, gritam os humanos quando as pessoas se comportam de maneiras que não se enquadram na concepção patriarcal do ser humano como um ser espiritual superior e racional. “Eles estão sendo tratados como animais!”, os humanos protestam com muita frequência, apáticos às camadas de significado desta declaração, que não apenas revela a incômoda verdade de que grupos humanos são submetidos à dominação, escravidão e violência com base naquilo que se percebe como sua animalidade, e que os sistemas de opressão humana estão inextricavelmente ligados aos sistemas de opressão animal; mas tal afirmação também revela paradoxalmente a crença de que os animais não merecem o mesmo tratamento e respeito que os humanos.

Nós, humanos, nos tornamos tão distantes, tão insensíveis às realidades da vida e morte animal que destruímos e esgotamos seus habitats e consumimos corpos de animais em tal escala que nos encontramos no meio de uma sexta extinção em massa causada pela crise climática. Em todo o mundo, as populações de animais estão diminuindo rapidamente. O jornal de hoje nos diz: “Três quartos das espécies de tubarões e arraias que vagam pelos oceanos estão ameaçadas de extinção porque a pesca excessiva reduziu os números em mais de dois terços em 50 anos”. Um declínio de 71% de tubarões e arraias oceânicas, desde 1971, informação jornalística relegada ao pequeno canto inferior da página 13, ofuscada por uma fotografia da ex-mulher de um famoso músico, que está leiloando seus preciosos pertences como parte de uma separação supostamente amarga. De forma nada surpreendente, a imprensa priorizou a difamação de uma mulher negra na mídia retratando-a como um “tubarão” ao invés de denunciar a devastadora perda das vidas de tubarões de verdade. Por que histórias como essa podem ser ignoradas tão facilmente e por que elas não nos abalam profundamente? Por que nos tornamos tão indiferentes àqueles e àquelas que percebemos como diferentes? O que é necessário para sentirmos empatia pelos outros em seus diferentes graus de diferença? Como podemos nos reconectar com nossos coabitantes não-humanos antes que seja tarde demais?

Deborah Bird Rose, ao pensar através de James Hatley sobre a extinção e o fim da vida das espécies humanas e não-humanas, conclui que “se importar com os outros agora e aqui é fundamental para que reparemos as ruínas desta terra” (2017, 153), com base nisso, vale levantar a questão de quem ou o que entendemos por “outros”? Que capacidades temos para cuidar dos outros e como essa prática do cuidado pode ser assumida?

Parte 2: Os outros significativos

Em uma sociedade neoliberal que valoriza o individualismo, somos encorajadas a cuidar principalmente de nós mesmas, de nossos estilos de vida, nossos corpos, de nossas famílias. Maria Puig de la Bellacasa, pensando a partir de Donna Haraway, perturba essa definição bastante estreita de cuidado, iluminando sua ambivalência e lançando a rede para revelar seus emaranhados de longo alcance, pegando e atando os muitos mundos além de nós, além de nossa espécie; mundos ecológicos de agência nas relações de cuidado para sustentar e perpetuar a vida. Ela propõe o “o cuidado que pensa-com” como uma prática relacional ativa que presta muita atenção às inúmeras ações terrenas e aos mundos interdependentes, tanto no que concerne à humanos quanto aos mais-que-humanos, inscrevendo o pensamento coletivo e o conhecimento situado com o intuito de criar relações de “alteridades significativas” (2017). Os outros significativos, gosto deste termo, ele evoca relacionamentos e relações, proximidades e intimidades, e simultaneamente reconhece a diferença discursiva. Para resumir este conceito, ser “significativo” é ser digno de atenção, de significado e de importância e, emprestando de Esther Pereen e Silke Horstkotte, “alteridade” é “uma distinção ou separação que pode acarretar semelhança bem como diferença” (2007, 10). Portanto, estar em um relacionamento de “alteridade significativa” é atentar para as semelhanças de uns para com os outros, a fim de criar novos significados e mundos na medida em que se respeita a diferença um em relação ao outro. Como Haraway explica, deste modo somos capazes de participar de conexões parciais situadas, nas quais as partes não se somam a um único todo (2003, 8).

Pereen e Horstkotte dizem que é esse choque do outro, essa interrupção da identidade pela alteridade, por meio da qual ontologias e distinções estáveis ​​são rompidas e substituídas por uma multiplicidade de mundos possíveis que vazam uns para dentro dos outros, tornando cada sujeito sempre já outro para si (2007). Portanto, referir-se à “alteridade”, seja em termos de nação, raça, gênero, classe, etnia, sexualidade ou espécie, é simultaneamente reconhecer nossas interconexões e interdependências. Essas ontologias relacionais trabalham contra os processos colonialistas brancos ocidentais de alteridade sistemática que marginaliza e exclui grupos com base na diferença percebida, afirmando grupos dominantes enquanto rebaixa outros. De acordo com essa lógica antropocêntrica, os animais ficam na extremidade oposta do espectro da diferença como um antônimo de “humano” e, portanto, grupos minoritários são frequentemente animalizados em vista de um processo de desumanização e animalização. Como parte de uma ética feminista de pensamento multiespécies, é urgente que continuemos a cultivar animais não-humanos como outros significativos ou, para usar uma definição de dicionário, como “pessoas importantes para o bem-estar de alguém” (Merriam-Webster’s Dictionary, 2021 ), o que nos remete à noção de cuidado.

Se, como aponta Filipa Ramos, “A arte pensa e nos convida a pensar o outro, e o faz de maneiras que são outras” (2016, 14), então, eu gostaria hoje de conceber a performance como uma prática corporificada de “cuidado que pensa-com”, que é capaz de cultivar relações de alteridade significativa. Como Puig de la Bellacasa nos lembra, existem três dimensões do cuidado: os “fazeres” do cuidado, os afetos e afetividade do cuidado, e a natureza ético-política do cuidado (2017). A performance pode ser entendida da mesma forma, por meio de seus atos, afetos e dimensões ético-políticas. A atuação em relação a animais não-humanos pode significar inúmeras coisas: o animal estando no palco, práticas poderosas de imitação, emulação e imaginação animal, metamorfoses xamânicas, práticas colaborativas cogeradas por meio de parcerias entre humanos e animais, exibições ritualísticas nos reinos dos animais não-humanos, e assim por diante. Seja qual for a forma como se a aborda, a performance oferece uma oportunidade sensualista de explorar e experimentar as fronteiras porosas entre humanos e animais. Mas, a fim de moldar esses “fazeres” em práticas de cuidado, em práticas de “cuidado que pensa-com”, devemos também considerar os afetos e as dimensões ético-políticas de tais performances interespécies.

Cuidar pensando-com é reconhecer a ontologia relacional entre todas as espécies, reconhecer, como amplamente discutido por Haraway, que as espécies não existem antes de suas relações, e que estamos sempre nos tornando-com muitas outras espécies. A performance interespécie cria zonas de contato entre mundos humanos e não-humanos, o que nos convida a prestar muita atenção a esses encontros de co-formação. Para usar as palavras de Traci Warkentin, “[O] tipo de atenção com que estamos preocupados aqui envolve todo o comportamento corporal, e um reconhecimento de que a incorporação acontece sempre em relação àqueles que são, socialmente, outros, tanto animais como humanos” (2010, 102). O artista maori Shannon Te Ao coloca este tipo de atenção em seu trabalho performativo em vídeo Two Shoots That Stretch Far Out (2013-14). Neste trabalho, Te Ao recita uma waiata (uma canção ou canto) maori pré-colonial para vários animais, incluindo um burro, um cisne, um wallaby, gansos, galinhas e coelhos. Assumindo uma posição diferente em cada cena, nas quais apenas uma parte de seu corpo é visível, Te Ao se descentraliza do enquadramento da câmera, permitindo que a presença do animal presida, enquanto ele se senta com eles ou se move pelo espaço, proferindo calmamente uma waiata na qual uma mulher lamenta a poligamia do marido. Mas, nas palavras de Te Ao, “O que vemos não é tudo o que existe” (Braddock 2019, 77). Na cultura Maori, na qual existe uma forte tradição oral, o korero (que significa “falar”) é um canal empático para manter as interconexões entre todos os seres, é a voz humana que ativa esse processo de comunhão, juntamente com o movimento, com o toque, e com a presença. Como Christopher Braddock explica, trata-se menos de uma linguagem comunicativa e mais de um transporte cósmico criado por um modo particular de atenção, que cultiva um significado que é compartilhado. Ao adentrar estas “redes invisíveis” a partir de um nível cósmico, um significado compartilhado é criado, e, embora esse significado possa talvez não ser imediatamente conhecido, Te Ao descreve um sentimento de esperança que há neste gesto, uma esperança de que alguma forma de compreensão que está para além da razão lógica seja desenvolvida. É por meio dessa forma particular de atenção, emergindo de uma canção de amor que lamenta uma relação abalada, que Te Ao adentra a relação imperfeita de ‘longa distância’ entre humanos e animais – ou, para usar o provérbio Maori, a relação destes dois brotos que se esticaram para longe demais um do outro.

Parte 3: Conhecer e Desconhecer

Puig De La Bellacasa nos diz que “pensar-com pertence à comunidade e também a cria, na medida em que inscreve o pensamento e o conhecimento naqueles mundos com os quais uma pessoa se importa…” (2017, 79). Conceber a performance como uma prática de cuidar pensando-com não é apenas reconhecê-la como um processo de produção de conhecimento, ou como uma “tecnologia semiótica” (o que significa dar atenção aos seus afetos moldadores de mundo, que lhe são inerentes), mas é também reconhecê-lo como uma ‘tecnologia’ pensante que contribui para as relações de cuidado. Ao pensar sobre como se relacionar com as diferenças entre as espécies, e isto através da performance, a pessoa tem a responsabilidade ética de apoiar tais espécies, uma vez que há efeitos muito reais que as práticas de criação de significado podem ter sobre a vida de uma espécie. Como produtores culturais e contadores de histórias, é importante reconhecermos que os significados que impomos às espécies animais estão inevitavelmente moldando a vida dos animais reais, para melhor ou para pior. E embora essas práticas falíveis de relacionamento sempre venham com seus riscos, erros e falhas, ao cuidar pensando-com – por meio da performance interespécies, e como parte de uma ética feminista comprometida em criar relações sustentáveis ​​de alteridade significativa –, cria-se novos padrões e novas formas de conhecimento relacional implícito, que têm o potencial de romper visões de mundo individualistas e antropocêntricas.

A performance interespécies explora novos tipos de conhecimentos, produzidos através do corpo e em relação a outros corpos. Vinciane Despret concebe o corpo como uma ferramenta de conhecimento, uma ferramenta de questionamento, como um meio de criar uma relação que proporcione novos conhecimentos (2004, 129) Ela descreve o experimentador – ou, neste contexto, o artista – envolvendo seu corpo, seu conhecimento, sua responsabilidade, e seu futuro em seu trabalho, e nos diz que a prática de saber se tornou uma prática de cuidar (ibid, 130). Isso pode ser entendido como uma forma de epistemologia feminista, que envolve formas corporificadas de conhecimento, tais como a emoção, e isto em resistência aos paradigmas de conhecimento ocidentais masculinizados dominantes que valorizam a razão desprendida de tais formas (Warkentin, 2010).

Entretanto, neste contexto, cuidar pensando-com também envolve o abandono do conhecimento, permanecer atento ao desconhecido como um gesto produtivo de anti-antropocentrismo. Um estado de desconhecimento fornece uma base produtiva para cuidar e, assim, relacionar-se com animais não-humanos. Para citar Una Chaudhuri:

A conexão que precisamos sentir a fim de nos importarmos o suficiente para proteger os animais e seus habitats tem que deixar espaço para que não-humanos tenham necessidades e desejos que não podemos conhecer, sem permitir que comecemos a imaginar erroneamente que podemos gerenciar sua ecologia complexa com nosso conhecimento insignificante (2015).

Aqui, Chaudhuri está fazendo um apelo à alteridade radical dos animais não-humanos. A fim de abraçar verdadeiramente uma ética feminista de cuidado, devemos aceitar humildemente que nunca poderemos realmente conhecer uns aos outros. Mas, ao aceitarmos o desconhecido, quebramos nossas barreiras, tornando nossos limites mais porosos, criando espaço para aquilo que outros corpos possam estar disponibilizando, no que também permitimos a troca entre os mundos das espécies, já que “nada vem sem um mundo seu” (Haraway 1994, 70). Por meio da atenção e da curiosidade, novos padrões são criados, permitindo encontros co-transformativos, que têm resultados inesperados. Posteriormente, isso nos permite também começar a desconhecer o humano, extrapolar e examinar as fibras que nos enredam em uma teia de preconcepções, preconceitos e tendenciosidades inconscientes do dia a dia, tornando a pessoa mais aberta às diversidades daqueles com os quais compartilhamos o planeta, sejam eles humanos ou outros, “significantemente outro, um para o outro, em diferença específica …” (Haraway 2003, 3).

Falar de conhecimento também deve ser reconhecer os saberes situados daqueles que estão envolvidos nas práticas de relacionamento. Puig De La Bellacasa, novamente pensando através de Haraway, descreve um “compromisso de buscar aquilo que outros mundos possam ser, na formação por meio do cuidado, ao mesmo tempo em que enfrentamos o problema de nossas próprias cumplicidades e implicações” (2017, 204). Para mim, a questão subjetiva de quem está incluído quando falamos de ‘nós’ e ‘nosso mundo’ emerge aqui, porque falar de “outros” e “alteridade” sempre envolve nosso próprio conhecimento e experiência situados. Para “testar as bordas do nós”, é preciso também aceitar a posição que se traz herdada. Portanto, um “nós” feminista radicalmente inclusivo deve prestar atenção às relações e interseções de diferenças, conflitos e histórias conturbadas, incluindo uma história na qual o feminismo se alinhou predominantemente com a branquitude. Para ecoar Puig De La Bellacasa, “Pensar com cuidado nasce da consciência dos esforços necessários para cultivar o relacionamento na diversidade” (ibid, 79).

Entretanto, cuidado demais pode ser asfixiante, tanto para quem cuida quanto para quem é cuidado, e pode “sufocar as sutilezas da atenção às diferentes necessidades de um ‘outro’, necessárias para uma relacionalidade cuidadosa” (Puig De La Bellacasa, ibid, 85). Portanto, para promover uma ética de cuidado em relação aos outros de uma forma que não os objetifique, há que se reconhecer, como diz Haraway, “agências não-harmoniosas e modos de vida que são responsáveis ​​tanto por suas díspares histórias herdadas quanto pelos seus futuros conjuntos, que quase nem chegam a ser possíveis, mas que são absolutamente necessários” (2003, 7). Isso cria relacionamentos que não são de uma semelhança coesa, mas de solidariedade e aliança, mesclando histórias imperfeitas e mundos situados para criar futuros transformados. Ao cuidar dos animais não-humanos pensando-com, e isto por meio da performance, com toda a sua bagunça, absurdo e risco, podemos começar a desvendar a história difusa do animal, que foi enraizada na ideologia masculina colonial branca ocidental por milhares de anos, e contribuir para um novo relato de uma posição feminista multiespécie, radicalmente inclusiva, que não fala em nome dos animais, mas capacita os animais por meio de uma política de aliança e uma relação de alteridade significativa, tornando visível a teia de agências multifárias de cuidado, neste mundo multiespécies. Como Haraway lembra a nós, feministas, “Nada deste trabalho tem a ver com encontrar mundos doces e agradáveis… nem com conhecimentos livres da devastação e das produtividades do poder. Em vez disso, a investigação feminista trata de compreender como as coisas funcionam, quem está na ação, o que haveria de ser possível, e como os atores mundanos podem de alguma forma prestar contas e amar uns aos outros com menos violência” (2003, 7).

Parte 4: Golfinhos que pensam-com

O Dolphin Dance Project (2009), também discutido por Una Chaudhuri, é um projeto que trabalha para abraçar as diferentes dimensões do pensar com cuidado através da performance. Usando vestidos de seda clara e nadadeiras longas, os dançarinos humanos primeiro se movem juntos na água oceânica, os braços ao lado do corpo, girando e se retorcendo, bolhas de ar fazendo cócegas em sua pele. Das profundezas do mar azul emergem seus colaboradores e professores de longa data, um grupo selvagem de golfinhos-pintados-do-atlântico, que se sincronizam com seus corpos familiares, trazendo com eles um coro de cliques, chilreios e assovios. Os dançarinos, humanos e não-humanos, realizam juntos uma forma de improvisação de contato que resiste ao toque físico, mas que se mantém em harmonia háptica através da água salgada que os conecta, fluindo entre corpos que se movem e se orientam, conduzindo e seguindo, conduzindo e seguindo… Através do contato visual, eles cultivam um olhar interespécies de confiança reforçada pelo estado mental calmo e aberto no qual os humanos precisam entrar para preservar o oxigênio. Juntos eles abraçam o desconhecido, dançando sua diferença e sua semelhança, dançando sua respiração, dançando sua alteridade tão radical quanto, não obstante, significativa.

Chisa Hidaka iniciou o projeto em 2009, junto com uma pequena companhia de dançarinas com formação em improvisação de contato, todas também mergulhadoras habilidosas. Seus colegas, artistas e colaboradores são um grupo selvagem de golfinhos-pintados-do-atlântico: Browser, England, Lucky, Pristine, Notcho, Jalapeno, Half Pec, Demi, Tipless, Eclipse, Scar e Scratchy. Por meio de uma ética de cuidado e respeito, o projeto gera filmes de dança interespécies por meio de práticas coreográficas colaborativas entre humanos e golfinhos selvagens. A obra é produzida no território e nas condições dos golfinhos, e o projeto é moldado por um código de conduta rígido – por exemplo, os golfinhos não são treinados, nem alimentados, nem coagidos de qualquer forma; os dançarinos não tocam nos golfinhos; as localizações dos filmes produzidos não são tornadas públicas; o projeto é informado ativamente pelas pesquisas científicas mais recentes. Ao criar essas condições, o projeto abre espaço para a agência dos golfinhos, o que permite que surja uma prática de verdadeira colaboração entre espécies. Esta abordagem funciona especificamente contra uma história vergonhosa de exibição exploradora de mamíferos marinhos, e particularmente porque o golfinho-pintado-do-atlântico foi uma das espécies mais cobiçadas pelos captores de mamíferos marinhos, devido a sua velocidade e agilidade acrobática, e ainda assim conseguiu escapar da escravidão (Gumbs, 2020).

Una Chaudhuri descreve o projeto como aquele que “busca atuar sobre e para o oceano”, “equilibrando o conhecido com o desconhecido” e “aceitando o desconhecido, na mesma medida em que cultiva a abertura e o estado de alerta”. Paradoxalmente, ela diz, “esta aceitação do desconhecido torna o oceano menos vazio e expõe os humanos como menos excepcionais do que talvez os acreditemos ser” (2015). São práticas como o The Dolphin Dance Project que oferecem um vislumbre promissor daquilo que a criação de relações de alteridade significativa através da diferença discursiva pode querer dizer, ensinando a nós, humanos, como cuidarmos sendo-com, tornando-nos-com e pensando-com, uns dos outros, dos animais e de seus habitats.

A feminista negra queer multiespécies Alexis Pauline Gumbs aprendeu muito com golfinhos e outros mamíferos marinhos, abrindo-se para a orientação ferrenha deles. Pensando-com uma manada de golfinhos listrados, Gumbs medita sobre a questão do trabalho não sustentado e não remunerado que é o cuidado. Ao invés das pequenas unidades familiares isoladas, incentivadas por uma sociedade capitalista a relutar em cuidar, ela pergunta: “E se a manada fosse a escala em que pudéssemos cuidar uns dos outros e caminhar juntos?” (2020, 56). Ela nos conta que manadas de golfinhos listrados nadam bem longe da plataforma continental, comem peixes com órgãos luminosos e apenas uma pequena parte de toda a manada é visível na superfície da água. Com isso, ela se pergunta “se poderíamos trocar a imagem de ‘família’ pela prática da manada, uma unidade de cuidado onde estamos aprendendo e reaprendendo como honrar uns aos outros, como ir a fundo, como nos revezar, como encontrar luz nutritiva de novo e de novo” (2020, ibid). Ela acredita que, neste momento da história, são essas lições de cuidado ensinadas pelos mamíferos marinhos que são as mais urgentes, e, ecoando suas palavras diante das notícias de hoje sobre tubarões em risco de extinção, “Quando até tubarões te falam para dar uma chance à paz, você sabe que algo tem que mudar” (2020, 26).

 

REFERÊNCIAS

Bird Rose, D. 2017, “Reflexões sobre a Zona do Incompleto” em Criopolítica: vida congelada em um mundo em fusão, eds. J. Radnin & E. Kowal, MA: The MIT Press, Cambridge, pp. 145-155.

Braddock, C. 2019, “Entangled Animisms”, Performance Research, vol. 24, não. 6, pp. 69-78.

Chaudhuri, U. “Discretion and Diplomacy in Interspecies Performance”, Animal Publics: Emotions, Empathy, Activism, July 12-15th 2015.

Derrida, J. (1997) 2008, The Animal That For I Am, Fordham University Press.

Despret, V. 2016, “The Body We Care for: Figures of Anthropo-zoo-genesis”, Body & society, vol. 10, não. 2-3, pp. 111-134.

Gumbs, A.P. 2020, Undrowned: Black Feminist Lessons from Marine Mammals, AK Press.

Haraway, D.J. 1994, “A Game of Cat’s Cradle: Science Studies, Feminist Theory, Cultural Studies”, Configurations, vol. 2, não. 1, pp. 59-71.

Haraway, D.J. 2003, O manifesto das espécies companheiras: cães, pessoas e alteridade significativa, Prickly Paradigm Press, Chicago.

Horstkotte, S. & Peeren, E. (eds) 2015, The Shock of the Other: Situating Alterities, Brill Rodopi.

Puig de la Bellacasa, María 2017, Matters of Care, University of Minnesota Press.

Ramos, F. 2016, Animals, Whitechapel Gallery e The MIT Press, London and Cambridge Massachusetts.

Warkentin, T. 2010, “Interspecies Etiquette: An Ethics of Paying Attention to Animals”, Ethics and the Environment, vol. 15, não. 1, pp. 101-121.

Webster, B. 2021, “Tubarões e raias oceânicas em risco de extinção”, The Times, 28 de janeiro, p.13.

Obras de arte

Shannon Te Ao, 2013-2014, Two Roots That Stretch Far Out, Vídeo de canal único, cor + som, visto em privado, cortesia do artista.

Chisa Hidaka & Benjamin Harley, 2009 – em andamento, The Dolphin Dance Project: http://dolphin-dance.org

Consulta em dicionário

‘Significant Other’ 2021, no Merriam-Webster’s Dictionary, Merriam-Webster, Springfield, Massachusetts, visualizado em 1º de fevereiro de 2021: https://www.merriam-webster.com/dictionary/significant%20other

 

* O termo original em inglês (significant other) é corriqueiramente utilizado para indicar alguém com quem se partilha uma relação íntima, similar ao termo “companheira(o)” do português. No entanto, dado o jogo conceitual que o texto empreende a partir das etimologias de interesse, parece razoável oferecer uma tradução mais, por assim dizer, cognata (Nota do tradutor).

**Photo: Shannon Te Ao two shoots that stretch far out 2013-14. Cinematography Iain Frengley

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