Comunicações, Anahí Gabriela González

Resistir ao dispositivo da espécie. Precariedade, performatividade e coexistência animal

Anahí Gabriela González
Tradução de Cassiana Stephan

I

De uma forma ou de outra, a desconstrução da dicotomia humano-animal se tornou uma das questões mais vitais e urgentes de nosso tempo. Isto porque nesta dicotomia se condensam políticas racistas, capacitistas, cis-heteropatriarcais e especistas, que perpetuam uma sangrenta exclusão de outros humanos e não humanos. Assim, Paul B. Preciado sustenta que os animalismos são uma chave para indicar as tortuosas “raízes coloniais e patriarcais dos princípios universais do humanismo europeu” (2014). Atualmente, a chamada “questão animal” não só supõe um desmantelamento das taxonomias ontológicas que colocaram outros animais sob o domínio do dispositivo do humano, em instituições como biotérios, zoológicos e fazendas industriais, mas também nos desafia a imaginar “comunidades multiespécies” que possibilitam outras formas de convivência entre os seres vivos.

É justamente a partir disto que pretendo abrir, neste trabalho, um espaço de reflexão sobre os caminhos desestabilizadores do humanismo logocêntrico, cuja violência conceitual e imaginativa coloca o Homem (cis, branco, heterossexual, saudável, produtivo e letrado) em uma posição hierárquica privilegiada em relação a outras formas de vida. Para tanto, argumentarei que a “questão animal” pode ser uma instância estratégica para desconstruir as produções sacrificiais e normativas do humano, bem como para colocar em jogo apostas ético-políticas, heterogêneas e situadas que confrontam as diferentes hierarquias que se sobrepõem às formas de vida.

A questão animal levanta a pergunta de quais vidas pertencem à humanidade propriamente dita e quais, por isto, merecem ser vividas, fortalecidas e afirmadas em detrimento de outras vidas que devem ser sacrificadas e precarizadas. Estas vidas são justamente aquelas que se encontram sob a estrutura de um “matar-não-criminoso” (Derrida, 2007), a saber, são as vidas de corpos racializados, empobrecidos, de dissidentes sexuais, de doentes ou daqueles e daquelas com diversidades funcionais. Tal problemática exige, então, a subversão do papel do dispositivo humano, como uma produção histórica que coloca certos corpos em posições diferenciadas de precariedade, resultando em vidas que podem ser sacrificadas para garantir o apoio da comunidade política. Portanto, é imprescindível operar uma desconstrução crítica de suas normas regulatórias para abrir espaço aos diversos modos de resistência possíveis.

II

Os animalismos desenvolveram um questionamento radical do “especismo” como um dispositivo de poder que rege a dominação dos seres vivos animalizados. Com efeito, as configurações especistas do humano, ao estabelecerem hierarquias em termos de raça, gênero e espécie, possibilitam uma morte não criminosa para todo corpo denominado sob o termo “animal”. Assim, o termo especismo surge justamente para se referir a um conjunto de práticas e discursos que configuram a divisão hierárquica e binária dos corpos em humanos e animais; sentenciando quais vidas são protegíveis e quais vidas são dispensáveis.

O especismo hierarquiza corpos, comportamentos e traços, estabelecendo uma distribuição taxonômica dos vivos que diferencia o propriamente humano (ou seja, a racionalidade, a brancura, a heterossexualidade, a cis-masculinidade) do animal, colocando este último no reino da regularidade e da incapacidade de responder. Além disso, o especismo, ao reunir corpos, gestos, espaços e discursos com o privilégio do que está codificado como “humano”, torna ilegível a dominação vivida pelos animais. Ou seja, se se assume que estes não respondem, que são corpos mudos governados apenas por instintos, então conclui-se que eles podem ser reduzidos e neutralizados a comportamentos controláveis ​​e dominados por um sujeito, sempre humano. Por isso os efeitos do especismo não se restringem apenas a outros animais: as mulheres, os gays, os “loucos”, os corpos racializados, enfermos ou neuro-divergentes, também foram historicamente inscritos como inferiores, sendo colocados no reverso do especificamente humano. A animalização tem sido uma operação fundamental para a subordinação e controle destes corpos subalternos.

A questão animal se situa, então, no eixo dos cortes e juntas que produzem a vida que merece ser vivida por meio da exclusão das que não merecem, das vidas “precárias”, como afirma Butler. Nesse sentido, é necessário desnaturalizar a produção de “quadros de reconhecimento” (Butler, 2009) hierarquicamente organizados em torno da espécie e tornar visível como o cálculo sobre o propriamente humano é uma das formas pelas quais o poder biopolítico oficializa a produção de corpos habitáveis ​​e inabitáveis. De fato, os cortes e incisões entre o que Derrida chama de “animalidade reativa” e “humanidade responsável” (2010) encontram sua articulação material em vários espaços confinados, como o hospital psiquiátrico, o zoológico, o espetáculo etnográfico, as fazendas industriais, mas também nas práticas de subjugação exercidas sobre os corpos codificados como insanos, animais, anormais ou selvagens.

A produção histórica desses espaços, por meio de cortes e hierarquias políticas, faz com que o sujeito branco, masculino e adulto se transforme no modelo da vida comunitária, naquilo que se constitui como a identidade-mesma na medida em que se distancia e se separa daqueles Outros, estranhos, sem cuja exclusão, no entanto, a comunidade não poderia ser instituída ou fundada. Portanto, o resultado da distribuição especista dos corpos é o autoposicionamento hierárquico do masculino, heterossexual, racialmente branco, saudável, produtivo e alfabetizado. A humanidade, como escreve Donna Haraway, é uma figura moderna e tem um “rosto genérico, uma forma universal”. No entanto, o rosto da humanidade “tem sido o rosto do homem” (1992, p. 86). Além disso, como Cary Wolfe apontou, a instituição violenta do sujeito estabelece o limiar do humano por meio de uma política de subjugação que designa o “animal” como sacrificial (2003), ou nos termos de Butler, como um “corpo inabitável”.

Ao abrir espaço para uma morte não criminosa, essa economia sacrificial é condição de possibilidade de uma estrutura simbólica e material que sustenta a morte dos outros racializados, empobrecidos e generizados. A naturalização da morte do outro animal, com base na espécie, é transferível para justificar o assassinato daqueles outros que permanecem irreconhecíveis como humanos. Em Vidas precárias, Butler chama a atenção para essa transposição, indicando que as concepções normativas do humano produzem, “por meio de processos de exclusão, uma infinidade de vidas não-vivíveis” (2004, p.17). O sujeito humano, como ideal hegemônico, tem em seu reverso uma esfera de descontinuidade, ou seja, uma zona de inabitabilidade onde emergem corpos insuportáveis, abjetos e impensáveis.

Em outras palavras, o especismo articula subjetividades privilegiadas e subalternas: há corpos cuja humanidade não é questionada; enquanto outros vivem no limiar, mais sujeitos à inabitabilidade e à precariedade do que outros. Com isso, a ontologização, a produção do campo do que pode “ser”, é construída a partir de atos (simbólicos e materiais) de iteração (ritualizados), em um processo de articulação de dispositivos, a saber, discursos, espaços, práticas, entre outros elementos que possibilitam o surgimento do Homem e de seus Outros. A ficção da espécie humana é então produzida a partir de atos que citam (de forma “coerente” ou “incoerente”) as normas hegemônicas do humano, que sacrificam e erradicam alguns (aqueles que não importam), assimilam e corrigem outros (aqueles que podem ser incluídos diferencialmente) e reafirmam a supremacia do Homem (o ideal normativo). Ao mesmo tempo, é nessa mesma iteração que ocorre a aparente essencialidade da ficção humana, de onde é possível iluminar não apenas sua instância normalizada, mas também sua transgressão e desestabilização.

A condição do humano é mutável e incerta: por se tratar de uma formação histórica, pode ser desmontada e desenraizada, mostrando as fissuras que lhe são inerentes. Assim, determinados corpos devem citar adequadamente sua humanidade a cada momento (em todas as práticas e comportamentos, nos desejos, pensamentos e espaços que habitam), de acordo com parâmetros estabelecidos como essência humana. A humanidade é, então, o nome de um conjunto de normas que devem ser realizadas de forma coerente, dada a fragilidade da sua articulação: há uma certa forma de corporificar tais parâmetros que se legitimam, que produzem corpos adequados e coerentes. Mas essa aparente essencialidade sempre se defronta com sua própria contingência. Na verdade, o critério para determinar quais corpos e quais vidas importam depende do grau de adaptação desses corpos às normas que, por sua vez, os produzem e os esculpem.

Nesse sentido, as categorias “homem” e “animal” não são nomes para representar seres anteriores aos conceitos e políticas que buscam administrá-los, mas são construções performáticas que classificam, controlam e esculpem corpos e sujeitos. Essas ficções emergem da articulação de discursos e materialidades, de diferentes “quadros de reconhecimento” que regulam (e produzem) corpos e modos específicos de espacialidade. Portanto, para além da vulnerabilidade existencial comum compartilhada pelos seres vivos, o dispositivo da espécie é uma forma de produzir uma precariedade diferencial, desigual e induzida que, ao estabelecer compulsivamente hierarquias em termos de raça, classe, localização geopolítica, capacidade, gênero e espécie, entre outros, tornam irreconhecível o sacrifício de seres vivos não codificados como “humanos”. Nessa perspectiva, é possível argumentar que o especismo induz e organiza sistematicamente a vida precária dos corpos animais e animalizados.

III

O desdobramento do dispositivo da espécie tenta dobrar os corpos em suas possibilidades de existência, em suas interações, contatos e desdobramentos. Por isso, seu funcionamento se traduz em controlar, subjugar e homogeneizar, produzindo uma dinâmica que mina a singularidade de cada modo de vida. Agora, se os corpos estão envolvidos em uma rede de interdependência vital, se suas vidas se recusam a ser controladas, então nos perguntamos o que significa resistir ao normativamente humano e à sua pretensão de hierarquizar e controlar os vivos? Que novas possibilidades se abrem para a política, a ética e a comunidade quando elas não procuram se firmar na ideia de identidade? Como você constrói um animalismo que não tem a identidade como ponto de partida?

Talvez, se afirmarmos a interdependência e a vulnerabilidade compartilhada, talvez assim possamos imaginar políticas de animalidade que reivindiquem a multiplicidade de formas de vida, em face da vigilância e controle do autoposicionamento especista. Tal deslocamento nos levaria não apenas a transgredir as distribuições diferenciais, mas também a colocar em jogo apostas ético-políticas, alternativas e heterogêneas que promovem “alianças multiespécies” (Preciado, 2013, p. 10), ou seja, formas mais hospitaleiras do comum, mais habitáveis, onde o que importa são os encontros que se tecem entre corpos. É nessas apostas, por alianças entre modos de vida, que se pode configurar políticas comunitárias que, em seus interlúdios, confrontam as hierarquias especistas, abrindo-se e nos abrindo para o futuro do animalismo.

Só podemos desafiar os limites éticos e políticos do nosso tempo, ouvindo os gritos (e uivos) daqueles corpos cujas vidas são inabitáveis ​​e impossíveis de viver, partindo das normas atuais. Este encontro abriria a possibilidade de uma rede de colaboração e apoio marcada pela promessa atual de construir o comum a partir de um espaço de cuidado multilateral e coletivo. Assim, afirmar a interdependência, reconhecer as redes que nos permitem nos des/constituirmos, destrói qualquer ideia de autonomia e individualidade: nenhuma vida é autossuficiente, dependemos dos outros e das condições que sustentam a nossa existência. Sempre existimos em relação e com outras vidas. Nesse sentido, deslocar e resistir à ordem hetero-patriarcal, branca e capitalista implica se situar nos espaços da anormalidade, precariedade e inospitalidade da atualidade, para nos abrirmos a outras possibilidades de existência.

Portanto, se o animal é objeto de sacrifício, disciplina e controle pelo dispositivo da espécie, então um dos maiores desafios hoje é imaginar múltiplas políticas que visam experimentar a vulnerabilidade animal como uma instância alternativa para pensar outros caminhos de se habitar a existência. Colocar-nos ao lado daquela animalidade historicamente subordinada, explorada, repudiada e até invisibilizada, permite-nos retraçar os caminhos do logocentrismo e do enorme fascínio causado pela normalidade tecida pelo antropocentrismo. Trata-se de assumir uma vulnerabilidade compartilhada que não nos assimila à ordem cis-heterocapital humanista, mas nos dá ferramentas para subvertê-la.

Bibliografia

Butler, J. (2004). Vida precaria. El poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós.

Butler, J. (2009). Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Buenos Aires: Paidós.

Derrida, J. (2005). «Hay que comer» o el cálculo del sujeto. Revista de los Confines. 17, 150-170.

Derrida, J. (2010). Seminario La bestia y el soberano, vol. I. Buenos Aires: Manantial.

Haraway, D. (1992). Ecce homo, ain’t (ar’n’t) I a woman, and inappropriate/d others: The human in a post-humanist landscape. En J. Butler, J. Scott. Feminists theorize the political, (pp. 86-100). London: Routledge.

Preciado, P. B. (2013) “Decimos revolución”. En: Solá, Miriam & Urko, Elena (Ed.) Transfeminismos. Epistemes, fricciones y flujos. Txalaparta: Tafalla.

Preciado, P. B. (2014, 26 de septiembre). Le féminisme n’est pas un humanisme. Libération. Recuperado de: www.liberation.fr/chroniques/2014/09/26/le-feminisme-n-est-pas-un-humanisme_1109309

Wolfe, C. (2012). Before the Law. Humans and Other Animals in a Biopolitical Frame. Chicago: University Chicago Press.

*Photo: Lauren Baheux
Source: The Dodo

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