Diante de “grandes males”, o Urubu não temerá os “grandes remédios.” [1] No meio de um mundo degenerado em que o Urubu se alimenta, carcaça por carcaça, à medida que tria a carne que o enriquece, deixando autores e cientistas apodrecerem na morte já encetada, a prosopopeia bestial e necrófaga se dirigirá àquelas e àqueles que não temem o pior e, assim, traduzirá em palavra o caos que é preciso ter dentro de si “para dar luz a uma estrela dançante.” [2] Por vezes o Urubu empregará palavrões, palavrões inaudíveis, inefáveis e será justamente no inefável que a poesia se dará.
O Urubu é, antes de tudo, esta ave-necrófaga que, eliminando os cadáveres, evita a propagação de doenças. A perspectiva do Urubu não é transcendental, pois em seu voo planado, ele observa atentivamente o subterrâneo, o “lugar de irrupção do debaixo, do embaixo, do que, na cultura, não tem direito, ou pelo menos não tem possibilidade de expressão.” [3]
Aqui, neste jornal, o Urubu é sujeito que pensa e que fala, sujeito polífono e poliglota, que toda semana disponibilizará seus aforismos e que a cada trimestre manifestará seus pensamentos em uma ordem desordenada, a qual visa construir novos espaços de resistência literária e intelectual.
As autoras deste jornal bestial, deste jornal que é uma besta sem nação, nunca assinarão os textos e aforismos com seus nomes. Tal apagamento que traz à tona o Urubu, por meio de um “comunismo da escrita”, é deliberadamente revolucionário. [4] O caixão do ego deve se abrir para que o Urubu edifique a pluralidade sem excluir nada e nem ninguém, sem responder a qualquer imperativo narcísico ou institucional.
Trata-se, portanto, de um jogo literário espontâneo e consciente de si mesmo – que reflete sobre sua espontaneidade e seus limites, que primeiro explora pelo limite para, então, abrir o campo dos possíveis. Um jogo entre quatro cabeças que fala desde o aberrante, um jogo que acontecerá por meio da digestão do requintado cadáver de um mundo que se foi – e que fará o leitor levantar voo em direção a um lugar outro, um lugar até então impensado, onde a ave está livre porque sabe “dançar com suas correntes.” [5]
Você encontrará no presente jornal aforismos vindos do fim do mundo e textos redigidos coletiva e anonimamente que abordarão, entre outros assuntos e na desordem, a questão das revoluções, das patologias, da aprendizagem, dos feminismos, do pós-colonialismo, do animalismo, da morte, das crenças alienantes, das normas excludentes, e talvez, provisoriamente, algumas questões, mesmo que sem respostas, capazes de construir um hoje ou um amanhã onde “se não existissem médicos, jamais existiriam doentes.” [6]
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[1] (HIPÓCRATES, Aphorismoi, 1973-1989, seção 1, §6).
[2] (NIETZSCHE, Also sprach Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen, 2016, §5).
[3] (FOUCAULT, Le courage de la vérité, 2009, p.173).
[4] (GOBILLE, Le Mai 68 des écrivains. Crise politique et avant-gardes littéraires, 2018, p.178).
[5] (NIETZSCHE, Der Wanderer und sein Schatten, 2016, §140).
[6] (ARTAUD, Artaud le Mômo, 1947, p.53).
*Photo: Urubu de cabeça preta / Urubu noir ou Vautour noir