por
Felipe Durante
Ao longo da história ocidental a relação entre animais humanos e animais não-humanos foi problematizada a partir de uma série de perspectivas, tal como a perspectiva religiosa, a perspectiva social, a perspectiva jurídica e a perspectiva filosófica. Diversos autores se propuseram a pensar a relação interespécies e suas váriadas possibilidades. Pensadores como Teofrasto, Plutarco, precursores e teóricos da ilustração – tais como Descartes, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant –, autores utilitaristas, como Jeremy Bentham, e até os considerados pessimistas, como Arthur Schopenhauer, servem de exemplos para essa questão. Também poderíamos pensar em intelectuais que para além da teoria, adotam uma postura ética em relação aos animais não humanos, tal como a filósofa Angela Davis, que é vegana.
A questão é muito ampla e percorre terrenos pantanosos, searas intrincadas, caminhos tortuosos e pode engendrar uma infindável variedade de debates, a partir de múltiplas perspectivas. Alguns deles não são produtivos; desses, alguns são até mesmo perniciosos. Em meio a tal vastidão de possibilidades, um dos autores que se destaca e é um nome constante neste debate a partir de meados dos anos 70 do século passado é o filósofo australiano Peter Singer. Singer ficou conhecido e famoso fora do meio acadêmico em grande parte por conta do seu livro Libertação Animal, lançado em 1975. Essa obra ficou conhecida e foi publicizada como sendo a “bíblia” dos direitos dos animais.
Lançado no Brasil em 2004 pela editora Lugano e reeditado posteriormente pela editora Martins Fontes, a obra contém um prefácio especialmente escrito para a edição brasileira, seguido dos prefácios referentes à edição de 1990 e à edição de 1975, respectivamente. Onze anos antes, em 1993, era lançado no Brasil a tradução em português da obra Ética Prática de Singer, que possui um escopo de reflexão muito mais amplo do que a ética animal e que foi publicado pelo autor em 1980.
Nesta obra Singer apresenta a sua concepção de ética, fundamenta e problematiza o termo igualdade, dedica um capítulo a destrinchar “o que há de errado em matar” e passa a refletir, então, sobre diversos temas relativos a questões éticas, tais como tirar a vida de animais não-humanos, a questão do aborto, embriões, fetos, eutanásia, distribuição de riquezas, direitos ambientais, entre outros temas considerados relevantes pelo autor. Antes do lançamento de Libertação Animal em português, restava à leitora e ao leitor brasileiros que não conheciam o idioma inglês, mas que tinham interesse em ler sobre direitos dos animais e tinham em Singer uma referência, a leitura e o primeiro contato com essa obra.
Por que esse dado é importante? Na minha fala esse dado é importante porque ele ilustra uma curiosidade: quem teve o primeiro contato com a teoria de Singer através do livro Ética Prática, teve contato com uma obra densa, que possui uma linguagem árida e uma sistematização muito mais rigorosa do que a apresentada no livro Libertação Animal, o qual possui uma linguagem muito mais leve, acessível, e adota um tom quase panfletário. Quem teve seu primeiro contato com o tema a partir do livro Libertação Animal e gostou da obra, ao buscar ler o Ética Prática para ampliar seu conhecimento sobre a questão, pode ter sentido alguma frustração e dificuldade por conta das características mencionadas acima.
Em ambos os livros podemos ter contato com o conceito de especismo (ou especiecismo), termo que foi popularizado por Singer, mas que não foi cunhado por ele. Este conceito é o foco da minha fala porque enxergo nele um conceito nevrálgico para as discussões e debates que se seguiram a partir do lançamento desses dois livros e que mobilizaram tanto a comunidade científica quanto ativistas dos direitos dos animais não humanos. Portanto, o meu objetivo aqui é o de explicitar a forma pela qual Singer expõe, define e articula o conceito de especismo nessas duas obras, dando ênfase à obra Libertação Animal e evidenciar a importância que o conceito ganha no interior da exposição do autor. Com isso creio que serão mobilizados elementos relevantes para pensarmos, a partir de um ponto possível e relativamente seguro – ou, ao menos, pertinente – as relações éticas, políticas, jurídicas e sociais que permeiam e atravessam uma série de debates sobre animais humanos e não-humanos.
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