uma novela de Lilas Bass
Tradução de Cassiana Stephan
Uma arena de pessoas com tanta gente que não se sabe mais onde alocá-las, são tantas pessoas que umas começam a pisar nas outras, vindas de todos os lugares, desde Charles Manson até a padeira que faz croissants amanteigados que cheiram tão bem pela manhã, desde o psiquiatra-chefe de Sainte-Anne até meus próprios primos, e até mesmo as crianças do bairro de minha escola, todos amontoados em uma arena que mais tarde me dirão ser um Tribunal.
Amarrada, com pés que não podem se mover para frente ou para trás, minhas mãos estão acima de minha cabeça e senhores com perucas encaracoladas me despem de cima para baixo. Eles me trazem um espelho para que eu jure perante o tribunal e perante mim mesma que falarei apenas a verdade e nada mais que do que a verdade.
Eu juro.
Ou melhor balbucio este juramento, engulo-o porque meus lábios também estão amarrados – quem sou eu para jurar?
O homem grande e gordo com um chapéu que me faz rir (se é que posso rir com meus lábios que não se abrem – de qualquer modo rio no interior de mim mesma) não aprecia minha insolência: bate forte em meus dedos com seu martelo tão desproporcional quanto ele, mas ainda assim todos precisam vê-lo direito. A multidão de toda esta gente que agora conheço bem de perto se cala.
Um outro senhor que eu não havia notado por ser muito pequeno e porque mal consigo me virar se aproxima de meu ouvido para que eu o escute bem, acredito que ele me confiará um segredo silencioso mas, na verdade, ele começa a gritar tão alto que minha orelha acaba caindo – a multidão explode em gargalhadas unânimes e estrondosas.
A cabeça do Juiz está sorrindo também, a ele posso ver claramente porque ele está de frente para mim, e ele bate de novo em meus dedos para silenciar a sala decididamente dispersa. Uma mão se extirpa da multidão pega minha orelha e começa a comê-la.
“Em virtude do artigo 405 parágrafo 3 do Código de propriedade física infantil, e considerando a jurisprudência da suprema Corte de Paris (CA 1786), em que medida você acredita ter participado dos atos de violência cometidos contra a natureza de seu próprio sexo?”
O homem que fez minha orelha cair me sacode para que eu responda – mas eu não posso.
“Em virtude do artigo 405 parágrafo 3 do Código de propriedade física infantil, e considerando a jurisprudência da suprema Corte de Paris (CA 1786), em que medida você acredita ter participado dos atos de violência cometidos contra a natureza de seu próprio sexo?”, insiste ele.
Aceno com a cabeça para dizer que não. A multidão é novamente abalada pela histeria sarcástica, o martelo cai em meus dedos pela enésima vez.
“Senhorita, sejamos sérios por alguns instantes, pode ser? De agora em diante, tratar-se-ia de parar de zombar do mundo. Você participou de alma e corpo de atos que esta Corte não está de forma alguma preparada para ouvir. Tenho aqui uma lista – e de fato ele desenrola uma lista que cai sobre minha cabeça indo até meus pés, atrás da qual me sinto um pouco confortável já que ali posso me esconder – que reúne o conjunto de suas colaborações obscenas. Nós sabemos de tudo, Senhorita. Nós sabemos de tudo e você também sabe.”
Ele espera por minha reação mas como não me vê mais, ele se irrita e recolhe sua lista. A multidão está ficando impaciente e consigo sentir muito bem isto porque alguém está cutucando minhas costas.
O senhor que gritou em meus tímpanos começa a falar por mim, como se ele fosse me defender:
- Meritíssimo, A Senhorita aqui presente reconhece os fatos pelos quais é acusada e deseja manifestar perante Vossa Excelência e perante esta Corte seus mais profundos e sinceros arrependimentos. Atualmente, ela está levando uma vida digna de nossa República – além disso, há anos que ela não colabora mais com estes atos odiosos, o que não é pouca coisa.
- Eu entendo, meu caro Senhor, mas você teria como provar o que está afirmando?
A multidão ri ainda mais, e a padeira cospe uma enorme papa amanteigada que escorre pelo meu rosto.
- Meritíssimo, se me permite, efetivamente tenho as provas do que disse e gostaria que o Dr. Genoux se aproximasse para dar continuidade à operação.
Dr. Genoux chega em uma cadeira do Segundo Império carregada por dois colossos com cabeça de macaco enquanto o Juiz se ergue acima de mim. O Advogado me deita e a multidão se inclina e avança para entrever a cena.
O silêncio é palpável.
Então, o Dr. Genoux afasta pouco elegantemente minhas coxas e começa a vasculhar meus lábios sem pelos, procurando não sei o quê, mas no geral acho a sensação bastante agradável a ponto de começar a urinar em seus dedos. Ele continua sua busca clínica, tira um espéculo de aço inoxidável, desdobra-o o máximo possível, mas parece desapontado de não encontrar o que procura. O Juiz está em suas mãos. O Dr. pede para que lhe tragam todos os seus materiais e ele abre sua caixa de ferramentas da qual ele tira, entre outras coisas, agulhas, compressas, um martelo e uma tesoura de poda. Ele treme um pouco durante a operação, começa a suar gotas grossas sobre meu sexo e começa a se desesperar para encontrar qualquer prova de minha honra. O Dr. acaba finalmente se irritando perante meu buraco escancarado – ele pede então um aspirador, que seus assistentes empurram pela minha vagina até meu esôfago e que faz um barulho infernal. O aspirador atinge meu baço (eu acho) bem como minha vesícula biliar mas nada prova que sou inocente dos fatos dos quais sou acusada.
O Dr., agora vermelho de vergonha e de fúria, rende-se à evidência: ele não poderá provar nada medicamente. Ele limpa a própria garganta, retira o aspirador, o espaçador e outras pinças que estavam entre minhas pernas e se retira da Corte esboçando uma breve reverência de derrota.
“Em virtude do artigo 405 parágrafo 3 do Código de propriedade física infantil, e considerando a jurisprudência da suprema Corte de Paris (CA 1786), em que medida você acredita ter participado dos atos de violência cometidos contra a natureza de seu próprio sexo?”, irrita-se o Juiz.
E mais uma vez.
Visivelmente muito aborrecido, ele puxa sua grande cabeça de seu pescoço gordo com um fleuma enorme, ele alonga sua cabeça o máximo possível com suas mãos gordinhas e a coloca diretamente em meu orifício. Ele força um pouco para entrar ali porque sua cabeça é absurdamente grande, mas o que você quer, ele acaba se introduzindo em minha vagina que, por efeito de contração, absorve inteiramente sua cabeça. Sinto que ele vasculha em meu interior de uma maneira muito desordenada e desajeitada e que ele repete sua questão que ressoa do interior do meu ventre: Artigo 405, propriedade infantil da Suprema Corte, violência e sexo impróprio.
E então ele, de fato, se cansa por continuar a se estrangular em minha cavidade, bate contra minhas paredes mas nada ajuda: ele sairá sem prova de minha ingenuidade, se é que ele sairá. Toda a assembleia começa a ficar impaciente. Confesso que estar com o ventre tomado pela cabeça bulbosa do Juiz me faz rir um pouco e me traz algumas sensações que ressoam apesar de mim no Tribunal ultrajado.
Em meio a esses ruídos tomada de uma ânsia e de uma inclinação muito popular, a multidão se precipita sobre meu ventre e se amontoa em cima de mim para me pressionar, há aqueles que tapam meus ouvidos e olhos, outros que arrancam meus pequenos e grandes dedos dos pés, um espelho é quebrado em minha cabeça e finalmente serão as crianças que acabarão com a cabeça do Juiz: ela explode sob o efeito de seus pezinhos que amassam meu ventre. O Advogado faz o possível para afastar a multidão dos agressores a fim de salvar isto que resta do Juiz, mas, ao fazê-lo, ele mesmo é sufocado pelos pés das crianças e pelos grandes seios da padeira.
Ouço em torno de mim essa multidão que berra minha culpabilidade, sinto o sangue negro da cabeça do Juiz que escorre ao longo de minhas coxas, não vejo mais nada e acabo me juntando a essa multidão que quer a morte de minha consciência pois meu corpo já não vive mais, eu deixo que a multidão me domine e esqueço da razão de ser quem eu sou. De qualquer modo, meu corpo desaparece inteiramente sob a horda que me oprime, e de todo este estrondo só escapa um ectoplasma minúsculo absolutamente esférico que um dos titãs com cabeça de macaco acaba triturando despreocupadamente, considerando, satisfeito, os garotos que saíram vitoriosos do processo com os quais ele poderá continuar a brincar.
*Photo: Carolee Schneemann, Up to and Including Her Limits, 1973–77
Source: moma.org