uma novela de Florian Orazy
Tradução Cassiana Stephan
Eu não sei mais. Há quanto tempo o bando está me perseguindo? Passaram-se tardes e manhãs, luas cheias, ocas, avermelhas e pálidas. Sentiu-se o calor, o gelo, o vento forte e suave, as chuvas, as tempestades. Houve o terremoto. Quando foi isto? Junho passado, eu acredito. Impossível me lembrar com plena certeza, só consigo ver o sol bem alto no céu branco, em alturas que só atinge no solstício.
Perdi a conta dos dias que estava marcando em um velho calendário de papelão, daqueles que são vendidos nas portas antes das festas. Com um pedaço de carvão, tracei uma linha naquele dia em questão. Meu lápis improvisado ficou grosso demais pois o carvão foi mal cortado e esfarelava. Depois de um ano, quando tive que relembrar os dias já marcados, tentei apagar os primeiros traços mas só consegui borrá-los ainda mais. Eu abri um buraco em várias datas pressionando a borracha com muita força. Apesar disso, não abandonei meu calendário.
Certa noite, no dia 19 de setembro (lembro-me bem pois foi o último dia que marquei), uma tempestade começou. Foi um daqueles ciclones que ninguém ousaria imaginar em tais latitudes, mesmo uma geração atrás. Fui tomar banho no rio e armar as armadilhas para os coelhos. Eu havia deixado minhas coisas na barraca, no nível de um pico rochoso. Spike estava cochilando. Fazia poucas horas que eu estava ali, tinha avistado esse pico ao longe e planejava passar a noite lá antes de partir na manhã seguinte. Por causa do Bando, nunca durmo mais do que uma noite no mesmo lugar.
Não vi a tempestade chegar. Nunca fui capaz de ler os sinais de alerta, os sutis gradientes de temperatura e de pressão que atravessam a atmosfera e aos quais a natureza é sensível. Essas coisas eram inúteis para minha vida de antes, sempre vivi quase que independentemente do clima. Eu morava na cidade, trabalhava em escritório. Quando eu saía, era sempre para entrar em algum lugar: em restaurantes, bares, baladas, cinema, museu, supermercado. Dizíamos “sair”, mas deveríamos dizer “re-entrar”.
Os verões se tornaram escaldantes, as autoridades exigiam que as pessoas ficassem confinadas e bem hidratadas, que só colocassem o nariz para fora em caso de urgência (o Estado havia investido bastante no sepultamento e na climatização dos transportes públicos). Poderíamos, é claro, ter transformado as outras estações em novos verões, ir à praia em novembro, abrir os terraços em fevereiro. Mas a incongruência desta ideia, acredito, nos levou a ignorá-la. Até o fim, continuamos a comprar luvas e casacos no início do inverno, colocando-os no topo da pilha quando a temperatura, perto do Dia de Todos os Santos, atingia pela primeira vez 30 graus. Novamente guardávamos nossas lãs no início de abril sem tê-las utilizado uma única vez. Estas são nossas ilusões coletivas, imaginários que construímos, que nos impediram de encarar a realidade.
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Meu calendário se foi, junto com minha borracha, meu carvão, minha barraca e a maior parte de minhas coisas. Se o ciclone não tivesse passado entre o Bando e eu, tenho certeza de que eles teriam aproveitado deste momento de fraqueza para me alcançar. Essas linhas que estou escrevendo não teriam existido, ou teriam sido muito diferentes.
Minhas coisas caíram há alguns quilômetros de distância e o Bando as recuperou. Em meu binóculo, vi meu calendário sendo estragado por uma pequena criatura, algumas semanas depois da passagem do ciclone. Eu reconheceria meu calendário entre milhares, com seus dias riscados em preto e suas fotos desbotadas de animais desaparecidos. O Bando recupera tudo, enterra tudo, relíquias e objetos do passado que se tornam inúteis, o Bando os transforma ou os destrói. Ele rapidamente remove os esqueletos instáveis da civilização e rói os velhos ossos. Ele recicla o mundo.
A criatura triturou o papelão entre seus dedos sujos, misturando a sujeira do papel às de suas unhas. Ela arrancou uma página e enfiou-a inteira em sua boca, depois permaneceu imóvel, flanqueada por duas bochechas enormes, mandíbulas inertes, como um devoto esperando que sua hóstia derreta. Então ela cuspiu o pedaço de papel tal como estava antes, jogou o resto do calendário no fogo e partiu, reunindo-se ao seu clã.
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No início, meu cachorro, Spike, me acompanhava. Ele era um Labrador amoroso, corajoso e forte. Como sempre moramos na cidade, não sabíamos fazer muita coisa e tivemos que aprender na marra. Estava assistindo a tutoriais de sobrevivência no Youtube, os quais se tornaram os vídeos mais populares nos últimos dias em que nos restavam eletricidade. Meu canal preferido era o de Marie e Youki. Marie foi um ex-soldado que, como eu, sobreviveu sozinho com seu cachorro, um pastor alemão. Assistíamos a todos os seus vídeos, eu sentado de pernas cruzadas dentro de nossa barraca, Spike com a cabeça inclinada sobre meu ombro, com o focinho colado na tela. Graças a Marie e Youki, aprendemos a armar as armadilhas, a acender uma fogueira, a coletar água da chuva para a toilette e para a cozinha, a preservar as vísceras, a estabelecer nosso acampamento para que pudéssemos ver sem sermos vistos, e então a apagar os rastros de nossa estadia. Eu me pergunto onde esses dois estão hoje, se eles foram pegos pelo Bando.
Eu amarrava Spike ao anoitecer, com medo de que ele se perdesse e se jogasse, sem perceber, na boca do Bando. Hoje, me culpo por não ter confiado nele. Na época, pensei que não poderia sobreviver sem ele.
Um dia, ele desapareceu. Procurei por ele em todos os lugares. O Bando estava, pois, há cerca de dez quilômetros atrás de mim, de acordo com minhas estimativas. O Bando avança em minha direção, sem linha de frente, exceto pelos enxames de corvos que plainam sobre eles em elipses negras. Portanto, é fácil saber onde o Bando está. Eu me deixei ser pego até ficar não mais do que meio dia de caminhada distante deles e tentei encontrar Spike graças a meus óculos. Foi assim que vi a criatura com meu calendário. Mas não vi Spike.
Esperei até o último momento para levantar acampamento. Eu praticamente sentia o hálito quente e úmido do Bando em meu pescoço. Passei a acreditar que Spike foi capturado por uma caçadora ou por um caçador solitário como eu. Hoje, tento não pensar mais nisto.
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A estação fria já começou, eu a vejo na claridade das manhãs e no azul mais profundo do céu. Acordei no meio da noite e o termômetro marcava dezoito graus. É a primeira vez, desde o início da minha viagem, que enfrentamos uma temperatura abaixo dos 20 graus. As altas latitudes estão se aproximando.
Eu digo “enfrentamos”, não sei o porquê: estou sozinho. Talvez eu estivesse tentando me tranquilizar, acreditar que ainda existe uma sociedade atrás de mim, pelo menos uma comunidade que compartilha um modo de vida semelhante ao meu. Não tenho provas.
Vi, ao longe, uma ou duas vezes, seres bípedes com formas humanoides. Não consigo chamá-los de humanos, embora de um ponto de vista biológico, ou devo dizer, genético, eles evidentemente o fossem. No entanto, sua aparência, seu andar, seu comportamento, de forma alguma me lembravam dos semelhantes que havia conhecido. Aquelas criaturas seguiam um curso errático, quase browniano, que os conduzia aleatoriamente de um ponto a outro do panorama (digo a mim mesmo, quando penso nisto, que talvez estivessem seguindo um instinto primitivo redescoberto). Eles avançavam curvados, com os braços balançando, olhando a todo momento de soslaio para a esquerda, para a direita e sobre seus ombros magros. Quando a superfície ligeiramente se inclinava para cima ou para baixo, suas silhuetas se desfaziam e, colocando as palmas das mãos no chão, eles começavam a andar de quatro patas, usando suas mãos grossas para sentir as cavidades do terreno. Para não ser como eles, continuo a escrever.
Uma vez, pelo binóculo, observei um deles pescando, um homem de cabelo comprido. Ele entrou na água até os joelhos, se posicionou no meio do rio com as pernas arqueadas, e então se inclinou para frente sobre a onda clara, os beiços arregaçados. Quase pude ver a ponta cinzenta de sua língua pendurada. Eu não conseguia ouvi-lo, é claro, mas o imaginei como um caçador gemendo de apetite. Muito rapidamente, seu peito mergulhou na onda e se levantou, uma truta agarrada entre suas mãos. Num instante ele a levou à boca e arrancou sua cabeça.
Algumas semanas depois, caminhando sobre uma vegetação rasteira, senti uma presença perto de mim. Parei e examinei os matagais ao redor. Segurei minha faca com firmeza, que jamais me deixa. Folhas farfalharam em minhas costas, eu me virei a tempo de ver uma massa escura escapando entre os arbustos. Não se tratava de um animal, mas de um homem, quero dizer, de um ser que havia sido humano. Assim foi o mais próximo que cheguei de um “contato”. Eles preferem me evitar, e isto me convém. Nós sobrevivemos bem até agora, cada um na sua. Nossos caminhos, porém, são idênticos: como eu, eles migram para o norte. Como eu, eles fogem do Bando.
Preferimos aproveitar nossos últimos instantes de humanidade sozinhos. Mesmo agrupados, organizados, equipados (não me atrevo a escrever “armados”), não seríamos suficientes.
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O Bando. Eu o nomeio no singular, como costumávamos dizer para o mar, o céu, o universo, o infinito e para todas as coisas cuja natureza e medida nos ultrapassam. O Bando é de fato composto por centenas, talvez milhares de bandos ou clãs, eles próprios constituídos por uma multidão de indivíduos. Devo então escrever os Bandos, se são apenas suas partes que o compõem, mesmo que de forma independente, formando um todo, e se mais cedo ou mais tarde eles se reunirão no seio de uma única entidade.
Às vezes, um clã se divide (eu já assisti, nas margens de um rio na montanha, a uma tal cisão). Mais frequentemente, dois clãs se juntam e começam a viajar juntos. No início, seus membros permanecem separados, como dois exércitos opostos forçados a se unir sob a mesma bandeira; depois, aos poucos, vão se aproximando, trocam, compartilham, copulam, até se unirem completamente. Infelizmente, seu grande tamanho não os desacelera. Pelo contrário, suas energias se acumulam, como as cristas de duas ondas do mar.
Quanto a mim, permaneço encalhado na costa do rio. Luto para me afastar da borda, mas sei que meus esforços são em vão. Não há mais continente. Apenas uma praia estreita varrida pelos ventos. Em breve, os últimos grãos de areia serão engolidos pelo Bando.
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Eu não durmo mais. Toda a noite hordas de corvos pairam sobre minha cabeça. Seus grasnidos soam como os gritos do fim do mundo. Poucos meses antes do colapso, os corvos invadiram as cidades. Ninguém entendia como eles poderiam ser tantos, era como se de repente eles tivessem saído das entranhas da terra. Estávamos em pleno verão, e se tornara impossível abrir as janelas, mesmo à noite, por causa do volume e da estridência de seus gritos. Sem sucesso, tentamos de tudo para afastá-los. Eles nunca partiram. Finalmente, fomos nós que saímos de cena.
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Parece que os corvos sempre são mais numerosos. Eles me seguem até mesmo de dia, me assediam. Esta manhã, enquanto caminhava alguns metros para urinar, um deles roubou uma pequena sacola feita de folhas que estava cheia de frutas vermelhas, outro derramou minha garrafa de água.
Estou exausto. Não vejo o Bando, mas sinto que estou perdendo terreno para eles.
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O Bando me alcançou.
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Mantive meu diário. Quando reli as narrativas das semanas e meses passados, seu conteúdo me pareceu velado. Tenho a impressão de que minhas memórias estão gradativamente se desvanecendo em razão de uma memória coletiva, ou melhor, de uma intuição coletiva, de um agregado de reminiscências e experiências, de lições de vida que compartilhamos.
Não me lembro mais como cheguei aqui, ou ainda, como eles chegaram. Acordei no meio da noite, encostado em um cercado. Ruídos ao meu redor, odores pungentes denotavam a presença de outros seres. Algo roçou em mim, eu pulei. Era um gato. Um Chartreux, eu acho. Ele estava miando, como se estivesse tentando me dizer algo. Não entendi. Ele foi embora.
Colocaram um arco de metal na minha cabeça. Descobri mais tarde que este arco permite que extraiam nossos instintos mais significativos, mais úteis, e que os juntem ao resto do Bando. Embora separados, os membros do Bando formam apenas uma única consciência, uma única memória e, portanto, um único corpo.
O Bando assimila todas as inteligências, todas as sensibilidades que encontra em seu caminho, animais e seres humanos, e até, diz-se, embora eu nunca tenha testemunhado, certas plantas. O Bando nos acolhe para aumentar a massa do seu ser.
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Às vezes, quando os recém-chegados tentam fugir, arrancar seus aros, atacar um dos nossos, os caninos ameaçam e o sangue flui. Os corpos dos rebeldes são queimados, muitas vezes devorados. Quando assisto a esse espetáculo, fugazmente algumas palavras passam pela minha mente: selvagem, cruel, monstruoso … No espaço de um instante, acho que consigo me lembrar o que estas palavras significam, mas muito rapidamente tudo fica borrado novamente. De longe, observo os dentes que rasgam as carnes, as vísceras pisoteadas, os grunhidos de satisfação voraz.
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Continuo a escrever da melhor maneira possível.
Meus sentidos, assim como minhas memórias, se reestruturam. Estou perdendo a visão, ao menos durante o dia. À noite, tenho a impressão de que ela se aguça, a menos que meus outros sentidos estejam assumindo o controle. Minha audição fica mais apurada, meu toque mais sutil, especialmente nos membros inferiores. Agora posso me guiar por uma floresta apenas com a planta de meus pés e evitar, assim, armadilhas de caça, arapucas (ainda há algumas aqui e acolá, deixadas pelos últimos caçadores solitários) e arbustos espinhosos. A progressão mais espetacular é a do meu olfato. Tenho a impressão de que uma porta se abre para outra dimensão do mundo. Já posso sentir a presença de meus pares e discernir a espécie a que pertencem; em breve, poderei reconhecer cada um deles, individualmente, e até diferenciar a mãe de seus filhotes.
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É impossível descrever a estrutura do Bando. Não é hierárquico, nem anárquico. Parece organizado naturalmente. Imagino que seja isto que chamamos de organismo.
É também muito difícil retraçar sua gênese, se é que esta tentativa faz sentido. Alguns dizem que no início o Bando era um grupo de mulheres e de homens que fugiram da cidade durante o colapso. Outros dizem que era um rebanho que forçou as cercas na busca por uma grama mais verde nos prados do norte. Outros dizem ainda que era uma horda de animais que fugiram de um zoológico desativado pelos humanos. Com certeza a verdade se encontra em alguma parte destas narrativas. Se, um dia, uma das espécies do Bando vencer as outras, ela escreverá sua própria história e a imporá a todos.
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A comunicação entre os membros do Bando é ao mesmo tempo incessante e rudimentar. Claro, é com os sapiens que interajo mais (é assim que as outras espécies nos chamam e acabamos adotando este termo), pelo menos com alguns deles. Falamos pouco, nem mesmo tentamos manter o escasso vocabulário articulado que subsiste entre nós. Não sentimos nostalgia. Pelo contrário, agora as palavras nos parecem superficiais, quase incongruentes.
Por inclinação, os novos indivíduos sempre começam se aproximando de sua família genética. Então, à medida que o ser se funde no Bando, os gradientes se modificam, novas familiaridades nascem e linhas que considerávamos rígidas se movem e são eventualmente ultrapassadas.
Os sapiens mais antigos são quase irreconhecíveis entre outras espécies.
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Encontrei meu caderno. Há muito não o abria. Reli algumas linhas, mas não entendi tudo. Frases complicadas. Palavras não certas, esquecidas …
Continuamos a avançar para o norte. O Bando é enorme. Existem muitos novos membros. Lobos, ursos polares. Nós pensamos que eles haviam desaparecido. No início, eles lutam entre si. Em seguida, o Bando os doma.
É difícil escrever. Vou me obrigar, ensaiar.
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As memórias voltaram: os arcos – inventados pouco antes do colapso. Para as pessoas, para que compartilhassem pensamentos entre si. E para que se comunicassem com seus animais.
Eu havia comprado um arco para o Spike – não funcionou, fraude. Disseram-me que a tecnologia não estava pronta, cérebros muito diferentes. Agora, no Bando, ele funciona.
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Spike encontrado! Não reconhecido – ele sim. Velho agora (Spike),
Ele conta sobre sua vida. Não educado. Ele partiu de propósito, para ir até o Bando. Ele disse – ele me amava, mas eu não o compreendia
Agora eu o compreendo – sem arco
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Mais carvão – mais escrita,
Solo congelado> impossível encontrar novo
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Spike morto – terra muito difícil – jogado na água
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acolhido sapiens – muito
sapiens falar as palavras muito
dizer palavras ainda – não entendido
–
precisa arco
*Site Florian ORAZY: florianorazy.com
**Photo: Christophe Jacrot, Les corbeaux – Hokkaidô / Japan.
Source: https://www.symanews.com/2018/12/14/en-dessous-de-zero/